Repensando o Sistema Elétrico Brasileiro

Prévia da Revista E&E Nº 102 

Palavra do Editor:

REPENSANDO O SISTEMA ELÉTRICO BRASILEIRO

O sistema elétrico brasileiro é sui generis pela predominância de energias ditas limpas, do ponto de vista da emissão de CO2. A nuclear faz parte deste tipo de energia e sua participação é de 3% da geração de eletricidade no Brasil.

A forte participação da energia hidráulica praticamente exigiu a criação de um sistema nacional integrado de eletricidade, administrado de forma centralizada. Esta configuração foi facilitada, até os anos noventa, pelo fato da geração e transporte de energia serem estatais. A gestão desse sistema cabia, na prática, à Eletrobras com suas empresas regionais, com algum contraponto da forte presença de geradoras e distribuidoras estaduais fortes.

A introdução da participação do capital privado nos anos noventa obrigou a mudança de estrutura do setor elétrico. Foi criado um órgão para gerir o Sistema Integrado Nacional Elétrico – SIN e uma agência para normalizar o setor. Empresas estatais foram privatizadas e outras abriram seu capital. Foi abandonada a regionalização das geradoras. Um sistema de leilões passou a reger as concessões. A conjuntura de abertura econômica e as características geográficas dos novos aproveitamentos impediu a construção de grandes reservatórios.

Uma reestruturação do mercado de energia elétrica foi feita sob forte influência do modelo britânico. Esta estrutura foi posta a prova no “apagão” de 2001 e isto abriu mais espaço para as térmicas convencionais na matriz de geração. Posteriormente foi aberto espaço para as novas renováveis, principalmente a eólica, e também para a biomassa. A nova estrutura não tinha preocupação especial com as regiões menos providas dos “três Brasis”. No terceiro Brasil, desprovido das energias integradas, estão as regiões isoladas do SIN onde, paradoxalmente, também estão as grandes possibilidades de geração hídrica futura.

A situação da energia nuclear não foi bem resolvida e continuou dependente de aportes estatais e engessada por uma fixação de tarifas que não possibilita novos investimentos.

As hidrelétricas construídas a partir da década de 1990 e as futuras não possuirão reservatórios significativos e operariam a “ fio d’água” onde a energia produzida é função da capacidade das turbinas instaladas e da vazão momentânea do rio que alimenta cada hidrelétrica sendo, portanto, mais sujeitas aos caprichos da natureza. Neste século tem sido crescente a utilização das fontes eólica, solar e biomassa intrinsecamente dependentes da natureza, aumentando a complexidade de atender e garantir o fornecimento de energia elétrica da maneira mais econômica possível minimizando o impacto ambiental. 

Estamos necessitando de uma nova visão do sistema elétrico brasileiro que leve mais em conta seu caráter tão especial. Para refletir sobre esse assunto, contamos com a colaboração de Othon Pinheiro da Silva, personagem de capital importância na história do desenvolvimento da energia nuclear no Brasil.

O trabalho aqui apresentado resultou de uma demanda feita a ele pelo Presidente do Clube de Engenharia. Procuramos acrescentar alguns detalhes e ilustrações ao trabalho que, fundamentalmente, segue a linha de pensamento do documento originalmente concebido para atender àquela solicitação.

Carlos Feu Alvim

 

Sumário

REPENSANDO O SISTEMA ELÉTRICO.

SISTEMA ELÉTRICO E   ENERGIA NUCLEAR NO BRASIL

Resumo.

Palavras chave:

  1. Energia Nuclear: Explosão Inicial
  2. Energia Nuclear para Gerar Eletricidade.
  3. Energia Núcleo Elétrica no Brasil 
  4. A Tradição Hidroelétrica.
  5. A Reforma do Sistema Elétrico dos Anos 1990
  6. Repensando o Sistema Elétrico. 
  7. Os três Brasis.
  8. O Futuro da Energia Nuclear no Brasil 

Bibliografia

 

 

Opinião:

SISTEMA ELÉTRICO E
 ENERGIA NUCLEAR NO BRASIL

Othon Pinheiro da Silva, Olga Mafra e Carlos Feu Alvim

Resumo

A energia nuclear é a mais recente das fontes energéticas que utiliza a humanidade e está completando oitenta anos.

Sua utilização inicial foi bélica e isto marcou seu futuro. Sua utilização pacífica na geração de energia nuclear se dá principalmente na geração elétrica, mas é também muito relevante o uso de isótopos na medicina. A energia nuclear é hoje reconhecida como caminho eficaz para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Na matriz energética brasileira, ela tem a participação de 3% e permanecerá com uma participação minoritária na matriz energética brasileira nas próximas 3 décadas.

A abertura econômica dos anos de 1990 tentou reorganizar o sistema elétrico de maneira a admitir a maior participação do capital privado e, forçada pelo “apagão de 2001”, incorporou novas fontes de na geração de eletricidade. O sistema adotado, com forte influência do exemplo termoelétrico britânico, apresentou problemas que precisam ser equacionados levando melhor em conta suas características próprias e sua complexidade econômica, geográfica e climática. A impossibilidade construir grandes reservatórios incluiu a energia hídrica entre as fontes sujeitas aos caprichos da natureza como a eólica, solar e biomassa,.

A solução dessas complexidades demanda uma reforma do sistema elétrico que necessita de energia estável de base, onde a nuclear deve colaborar e também para cobrir as oscilações do sistema com melhor uso dos reservatórios e o ocasional uso de fontes térmicas.

Palavras chave:

Sistema elétrico, energia nuclear, geração de eletricidade, gestão, clima.

1.    Energia Nuclear: Explosão Inicial

A energia nuclear é a mais recente entre as fontes disponíveis de energia utilizadas pela humanidade. A descoberta da fissão nuclear ocorreu em 1938/1939 quando Otto Hahn submeteu e publicou seus resultados experimentais e Lise Meitner e Otto Frish completaram a interpretação dos experimentos de Otto Hahn (Atomic Archive). A energia nuclear está, portanto, completando 80 anos de idade[1].

Como a descoberta da fissão nuclear coincidiu com o início da Segunda Guerra mundial, sua primeira aplicação foi bélica. A humanidade tomou conhecimento da energia nuclear em 1945 com os holocaustos de Hiroshima e Nagasaki que provocam até hoje no ideário popular natural rejeição a esta fonte de energia.

Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, teve inicio a geopolítica bipolar onde o mundo foi dividido em dois grandes blocos, o Ocidental liderado pelos Estados Unidos e o Bloco Soviético liderado pela então União Soviética (cuja sucessora é a Rússia).

A ONU foi criada em 1945 e os cinco países, considerados os vencedores da Segunda Grande Guerra Mundial, EUA, União Soviética, Reino Unido, França e China, ocuparam os lugares permanentes no Conselho de Segurança da ONU, tendo poder de veto. Não por coincidência, estes mesmos países foram os primeiros a se juntar ao “Clube Nuclear”, entre 1949 e 1964[2]. A China foi, até 1971, representada pelo governo nacionalista de Taiwan. A partir daquele ano, a Resolução 2758 (UN, 1971) da Assembleia Geral da ONU estabeleceu a República Popular da China como representante daquele país na ONU e no Conselho de Segurança.

Foi estabelecida uma corrida armamentista, entre estes dois grandes blocos, que priorizava a fabricação de bombas atômicas e mísseis de longo alcance para transportar as ogivas nucleares. Na década de 1950, as bombas nucleares tiveram sua capacidade de destruição “exponenciada” com o desenvolvimento das bombas nucleares que usam a fusão nuclear (comumente conhecida como Bomba H, de hidrogênio). A corrida armamentista continuou crescendo até que ambos os blocos entenderam o conceito MAD – Mutual Assured Destruction (destruição mutua assegurada). Acordos entre as duas maiores potências e o fim da Guerra Fria levaram a uma sensível redução das ogivas nucleares e a quantidade delas diminuiu. Atualmente, o número está estável, mas ainda foi mantido um considerável estoque mundial de bombas [3].

Os cinco componentes do “Clube Nuclear” são membros permanentes do Conselho de Segurança e cada uma das cinco potências tem a prerrogativa de vetar as resoluções da ONU. Posteriormente, Israel (veladamente), Índia, Paquistão e Coreia do Norte agregaram armas atômicas aos seus arsenais, mas sem adquirir o “status” de “nuclear weapon states” no Tratado de Não Proliferação Nuclear – TNP ou de membro do Conselho de Segurança da ONU.

Figura 1: Evolução das ogivas nucleares nos EUA.

Em 1965, o estoque de armas nucleares nos EUA havia superado as 30.000 ogivas, logo após a crise dos mísseis em Cuba (Figura 1). A partir daí, houve uma gradual redução dos arsenais tanto dos EUA como da União Soviética com acordos de desarmamento a partir de 1991. Seguiu-se a dissolução da União Soviética e os estoques de armas nucleares se estabilizaram a partir de 2010. Sabe-se menos a respeito da evolução dos estoques da extinta União Soviética. Rússia e EUA teriam, em 2018, um arsenal um pouco superior a 6.500 ogivas cada (Arms Control Association, 2018).

2.    Energia Nuclear para Gerar Eletricidade

Já no início dos anos sessenta, com o início do arrefecimento da grande corrida armamentista bipolar mundial houve mais espaço para aplicações pacíficas. Surgiram usinas nucleares incorporadas à rede de distribuição. As primeiras parecem ser a de Obninsky APS-1 que em 1954 teria se conectado, com 5 MW, à rede, a de Sellafield (Calder Hall) no Reino Unido, que iniciou seu funcionamento em 1956 com capacidade inicial de 50 MW, depois aumentada para cerca de 200 MW (European Nuclear Society), e que seria também a primeira a ser descomissionada  (Brawn, 2003) e a Shipping Port Atomic Power com 60 MWe da Duquesne Light Company  (Craddock III, 2016) nos Estados Unidos que, de acordo com a US Nuclear Regulatory Comission, foi a primeira projetada para uso comercial, tornando-se operacional em 1957.

A partir de 1962, a tecnologia nuclear começou a ter sua utilização ampliada na geração de energia elétrica e se iniciou um período de grande euforia, denominado por Weinberg como a “primeira era nuclear” (Alvin, 1997) onde inicialmente havia a utopia de que seria possível produzir grandes quantidades de energia elétrica a preços ridiculamente baixos com a fonte nuclear. No final da década de 1960, iniciou-se a conscientização da realidade dos preços.

O incidente ocorrido na usina de Three Mile Island, dia 28 de Março de 1979, em Harrisburg Pensilvânia nos Estados Unidos, embora não tenha causado praticamente nenhum dano humano ou material, serviu de alerta para o que deveria ser aprimorado nos conceitos de operação e segurança das usinas nucleares. Esse alerta provocou modificações em todas as usinas nucleares que usavam reatores tipo PWR – Pressurized Water Reactor, aumentando sua segurança.

Entretanto já existiam outras usinas nucleares com reatores de tecnologia menos segura como os reatores RMBK de Chernobyl, Ucrânia e também usinas em cuja instalação não haviam sido respeitadas as boas normas internacionais de segurança em sua localização, particularmente, na sua cota de posicionamento em relação ao nível do mar como ocorreu em algumas das usinas BWR- Boiling Water Reactor , que foram construídas na Central Nuclear de Fukushima, Japão. Uma descrição do ocorrido foi publicada pela AIEA (AIEA, 2015).

As usinas da Central Nuclear Fukushima foram construídas em uma cota baixa relativa ao nível do mar. A cota do protetor marinho foi fixada em 5,5 m a partir de avaliações disponíveis na época. Uma reavaliação do órgão superior que cuida de terremotos no Japão, anterior aos eventos, modificou para cima o nível de terremoto que poderia ser esperado na região bem como a altura da onda do Tsunami. A Tokyo Electric Power Company – TEPCO, proprietária da Central, não mudou as especificações das usinas nem foi forçada a isto pelo órgão regulador nuclear japonês. Com isso, a cota da usina era inferior à altura para resistir à onda máxima prevista na reavaliação. A previsão dessa reavaliação estava próxima da que realmente atingiu a Central (cerca de 10m) .

As instalações diesel geradoras de energia em emergência existem em todas as usinas nucleares para prover a energia elétrica necessária para operar o sistema de remoção do calor residual dos núcleos dos reatores nucleares após o seu desligamento. Em Fukushima, em virtude de insuficiente altura em relação ao nível do mar, estas instalações, auxiliares porem muito importantes, foram alagadas pela onda causada pelo tsunami e ficaram inoperantes.

O não funcionamento do sistema de remoção do calor residual levou a fusão de alguns dos núcleos dos reatores da Central. Todas as usinas nucleares são dotadas de sensores de vibração e acelerômetros que provocam a interrupção do funcionamento e desligamento das usinas quando ocorrem terremotos mesmo de baixa intensidade.

A analise posterior da central de Fukushima indicou que as usinas, sob o ponto da integridade das suas estruturas, tubulações e equipamentos resistiram bem ao terremoto que foi maior do que o terremoto com as características para o quais foram projetadas. A Central Nuclear de Fukushima se encontra localizada a pouco mais de noventa milhas náuticas do encontro de três placas tectônicas que transforma aquela região em um dos locais mais instáveis sob o ponto de vista da sismologia e, por via de consequência, muito sujeita a grandes terremotos e tsunamis. O acidente evidenciou o posicionamento das instalações diesel geradoras de emergência em altura insuficiente em relação ao nível do mar. Não foram devidamente consideradas, no projeto, as peculiaridades locais causadas pela proximidade do encontro de placas tectônicas.

À inoperância dos geradores de emergência á diesel (só um da unidade 6 não foi atingido) e das baterias de emergência, em 3 delas, provocaram os piores acidentes (derretimento do elemento combustível e vazamento do vaso de contenção). Deve-se notar que não houve vazamento significativo de plutônio como no caso do acidente de Chernobyl. Isso pode contribuir para tornar possível a recuperação, no médio prazo, de boa parte da área atingida.

3.    Energia Núcleo Elétrica no Brasil

A decisão brasileira, no inicio da década 1970, de construir a Usina Nuclear Angra 1 e posteriormente a decisão de assinar o Acordo Nuclear Brasil Alemanha em 1975, não foi bem assimilada pelo setor elétrico de então que naturalmente tinha cultura fortemente hidrelétrica pelo fato desta fonte, até então, atender perfeitamente às necessidades de demanda de energia elétrica brasileiras.

Em decorrência do Acordo Nuclear Brasil Alemanha, de 1975, foi programada a construção de mais duas usinas em Angra dos Reis (2 e 3) e ainda a construção de mais duas usinas no litoral sul do Estado de São Paulo.

Naquela época, a opção nuclear se constituiu numa decisão de cúpula em um regime de exceção, ainda inspirada na utopia de produção de energia elétrica a preços muito baixos. A influência de fatores ligados à geopolítica foi também fator importante. A crise mundial causada pelo grande aumento do preço do petróleo em 1973 foi utilizada como motivadora da decisão.

4.    A Tradição Hidroelétrica

A determinação governamental, na década de 1970, de incorporar energia nuclear ao sistema elétrico foi imposta ao setor elétrico em paralelo com um grande programa de construção de hidrelétricas já em curso. Este, embora contasse com a aprovação do setor elétrico, teve seu dimensionamento decidido no mesmo regime verticalizado de decisão. Esse programa hidroelétrico previa o aproveitamento de praticamente todas as possibilidades de construção de hidrelétricas nos rios situados na região que se estende do Vale do Rio São Francisco até Itaipu. Foram grandes os investimentos no setor elétrico nesta época, um dos setores que mais recebeu investimentos no Brasil. O grande crescimento anual do PIB – Produto Interno Bruto naquele período e a atratividade político/empresarial das obras foram estimuladores deste grande investimento setorial.

A região acima mencionada era muito convidativa para construção de hidrelétricas, pois é geologicamente estável, localizada no meio de uma grande placa tectônica, dotada de oportunidades de aproveitamentos hidrelétricos em locais que já haviam sido desmatados em função de ciclos agrícolas e apresentava topografia que permitia a construção de reservatórios com grande capacidade de armazenamento de água. Esta região apresentava um conjunto de características favoráveis à construção e operação de hidrelétricas raramente encontradas em outros locais do nosso planeta.

Na década anterior (de 1960) o sistema elétrico nacional havia sido padronizado em corrente alternada com sessenta ciclos por segundo. Até então, a região de Minas Gerais, São Paulo e Paraná operavam com sessenta ciclos enquanto o Rio de Janeiro operava com cinquenta ciclos. A padronização da ciclagem facilitou a integração do sistema elétrico nacional onde as maiores fontes geradoras, as hidrelétricas, têm suas localizações definidas pela natureza e não pelo homem.

Ao longo da década de 1980, as hidrelétricas atendiam plenamente a demanda de eletricidade. O estoque de água nos reservatórios dessas usinas complementava o fornecimento de água necessário ao funcionamento satisfatório das turbinas nos meses do ano em que as vazões dos rios eram menores do que a demanda de energia elétrica, mesmo nos ciclos pluviométricos de seca na região central do Brasil onde estão localizadas as nascentes e os rios que alimentam grande parte do sistema hidrelétrico nacional.

Nas décadas de 1980 e 1990, as hidrelétricas que haviam sido construídas depois do racionamento na década de 1960 continuaram satisfazendo à demanda de eletricidade mesmo nos anos mais secos dos ciclos pluviométricos plurianuais que, historicamente, parecem se repetir com a periodicidade de cerca de dez a doze anos aproximadamente.

A partir da segunda metade da década de 1980, o sistema elétrico começou a apresentar problemas em termos administrativos e gerenciais. Havia inadimplência de uma estatal em relação à outra e muita interferência do setor político. É emblemático o desafio do Governador Orestes Quércia de São Paulo ao Presidente de Furnas (e anteriormente Ministro) Dr. Camilo Pena: Face à inadimplência por parte do Estado de São Paulo, o Governador tranquilamente desafiou o Presidente de Furnas sugerindo, ironicamente, “desligar São Paulo”. O assunto foi afinal resolvido pela interferência de pessoas sensatas.

Em alguns Estados da Federação havia empresas estatais estaduais que produziam, transmitiam e distribuíam a energia elétrica e também recebiam energia das empresas estatais nacionais pertencentes à ELETROBRAS. Não havia a separação administrativa empresarial entre a produção de energia por atacado nas hidroelétricas, a transmissão (o transporte a distância da energia) e a distribuição ao utilizador final, ou seja, o varejo. A influência político partidária cresceu demais e passou a comprometer o funcionamento de todo o sistema.

5.    A Reforma do Sistema Elétrico dos Anos 1990

Na década de 1990, estava evidente a necessidade de reformatação administrativa gerencial do sistema elétrico nacional e a economia brasileira foi atingida por uma onda de liberalismo. Foi contratada então a participação de uma empresa consultora do Reino Unido para tratar da reformulação e regulamentação do sistema elétrico nacional. O sistema elétrico Inglês, ao qual os consultores estavam acostumados, era prevalentemente térmico e com características completamente diferentes do sistema brasileiro. Na reestruturação, pós Margaret Thatcher, do sistema elétrico do Reino Unido em 1983 foi introduzido na regulamentação o conceito de competição e houve grande privatização das empresas participantes do fornecimento da energia elétrica produzida e distribuída no Reino Unido.

O sistema elétrico inglês nos anos noventa era quase inteiramente termoelétrico e muito dependente da utilização do carvão que estava começando a ser substituído por gás natural. O funcionamento das centrais que utilizam estes combustíveis é bastante independente de ciclos da natureza e praticamente sujeito somente ao planejamento e controle humano. A fonte hídrica representava apenas cerca de 2,5% do total da energia produzida naquele país.

O grupo de consultores ingleses tinha o “DNA” termoelétrico e era, logicamente, orientado pelas ideias de liberalização da economia, privatização e competição. Esta “escola de pensamento” contribuiu para que este “DNA” da onda econômica pós Margareth Thatcher fosse fortemente “miscigenado” na formulação da regulamentação do sistema elétrico brasileiro, majoritariamente hidrelétrico, que necessita compatibilizar o planejamento de sua operação com as variações do sistema pluviométrico controlado pela natureza e não pelo homem como é o sistema térmico do Reino Unido.

Um estudo adequado que fosse realizado por grupo competente e analisasse as características e as peculiaridades do sistema elétrico brasileiro e se preocupasse, não somente, em seguir as regras de comercialização da economia liberal, teria identificado que o estoque máximo de água nos reservatórios das hidrelétricas brasileiras havia se mantido constante desde a década de 1980 enquanto o consumo de energia elétrica naturalmente continuou crescendo e isto certamente repercutiria no planejamento e na operação do sistema elétrico brasileiro, predominantemente hidroelétrico. Ou seja, a reforma implantada nos anos 1990 não peca por seu caráter liberal – cuja discussão é importante está em uma esfera mais ampla – mas por não haver levado devidamente em conta a natureza física do sistema elétrico existente.

Em 2001, o país vivia um período de pouca pluviosidade e os reservatórios das hidrelétricas se encontravam praticamente vazios. O Brasil foi então “surpreendido pelo obvio” e tornou-se necessário o racionamento de energia elétrica que “a mídia” apelidou de “apagão”.

Na realidade o “apagão elétrico” havia sido precedido de um “apagão de competência” ao não se entender, por quase uma década, que o aumento e a transformação do consumo implicariam em modificações compatíveis na produção e na transmissão de eletricidade no Brasil.

A Usina Nuclear Angra 1 havia sido fornecida pela Westinghouse e iniciou seu funcionamento comercial em dezembro de 1984. Infelizmente, principalmente por falhas técnicas de projeto, apresentou baixo nível de desempenho ao longo das décadas de 1980 e 1990. Razões financeiras fizeram com que a Usina Nuclear Angra 2 tivesse desacelerada sua construção e o início da sua operação comercial somente ocorresse em fevereiro de 2001. Estes fatos contribuíram para a descrença dos executivos do sistema elétrico em relação à opção nuclear. Até o inicio do funcionamento comercial da Usina Nuclear Angra 2 o “sistema elétrico” associava energia nuclear unicamente a grandes investimentos e baixo desempenho.

Esse mesmo “sistema elétrico” reconheceu, no entanto, que sem a entrada em funcionamento comercial da Usina Termonuclear Angra 2 com 1300 MW de potência elétrica, no início de 2001, o “apagão elétrico” teria sido ainda maior.

Em consequência do “apagão”, imediatamente foi decidida a construção de termoelétricas que usam como combustível óleo ou gás e que apresentavam menor investimento inicial e menor prazo de construção.

As termelétricas que foram construídas a partir do “apagão” têm contribuído para garantir a continuidade no fornecimento de eletricidade independentemente das variações do regime pluviométrico, mas provocam excessivo aumento do preço médio da eletricidade ofertada ao consumidor, sobretudo porque, ao menos substancial parcela delas tem sido operada continuamente (na base de carga). Desconsidera-se também o aumento da emissão de gases de efeito estufa, ignorando compromissos assumidos internacionalmente pelo País.

A experiência internacional demonstra que termoelétricas para funcionarem continuamente “na base de carga” devem ser preferencialmente termoelétricas convencionais, usando carvão como combustível, ou usinas nucleares. As usinas convencionais a carvão são responsáveis por 38% da energia elétrica produzida no mundo, as térmicas a gás natural representam 23% e o óleo combustível apenas 3%. A contribuição mundial total das usinas hidrelétricas é da mesma ordem de grandeza (16 %) da contribuição da fonte nuclear (10 %) e a das fontes renováveis (8%).

A Figura 2 ilustra a enorme diferença da distribuição das fontes energéticas usadas na geração de energia que, por sua natureza completamente diversa da média mundial tem que ser administrado de uma maneira também diferente.

 

Óleo

Gás Natural

Carvão

Nuclear

Hidro

Reno-váveis

Outros

Brasil

3%

11%

4%

3%

63%

17%

0%

Mundo

3%

23%

38%

10%

16%

8%

1%

Fonte: BP stats-review-2018-all-data (dados referentes a 2017 (BP, 2018)

Figura 2: Comparação das estruturas de geração de eletricidade no Brasil e no mundo mostrando a peculiar estrutura brasileira,

Embora ainda muito menor do que faz acreditar sua divulgação, tem sido crescente a contribuição da energia renovável, principalmente eólica, mas também solar na produção de energia elétrica no Brasil e no mundo. A energia eólica mais a solar representaram em 2017 8% no mundo e 7,3% no Brasil. É destaque no Brasil a participação da biomassa que representa cerca de 9% da geração elétrica (na Figura 2, incluída entre as renováveis).

O desenvolvimento da tecnologia, com o uso de redes elétricas inteligentes, indica a tendência ao crescimento na utilização da energia eólica e também da energia solar na produção de energia elétrica brasileira, respeitando, evidentemente, suas características de fontes intermitentes e, portanto, dependentes de complementação.

6.    Repensando o Sistema Elétrico

Parece necessário repensar e reestruturar o sistema elétrico brasileiro, fundamentado em práticas comerciais não condizentes com as peculiaridades brasileiras, que atualmente mantém quase as mesmas bases estabelecidas na década de 1990. A revisão do planejamento do sistema elétrico certamente tenderá incorporar os avanços tecnológicos e a maior utilização das redes inteligentes.

Na reestruturação do sistema elétrico brasileiro, as necessárias modificações na operação e comercialização devem ser compatibilizadas com as características das fontes primárias nacionais de produção de eletricidade e também com o tipo de distribuição geográfica e peculiaridades da demanda de energia.

O varejo, ou seja, a distribuição final da energia elétrica em média e baixa tensão ao consumidor, após as subestações rebaixadoras de tensão, é praticamente independente da fonte produtora de energia. Trata-se de atividade administrativa e gerencial muito dinâmica normalmente melhor executada por empresas privadas em regime de concessão. Esta atividade pode ser fracionada para evitar grande concentração de poder em uma única empresa distribuidora em grande área do território nacional.

A lógica pode indicar que as empresas privadas, “responsáveis pelo varejo”, ou seja, pela entrega da energia elétrica ao consumidor final, tenham a sua sede no município embora possam ter como acionistas majoritários empresas “holding” que não tenham sede no município. É desejável que nas empresas distribuidoras municipais de energia uma pequena percentagem de suas ações seja de propriedade de moradores no município e que comprariam e também venderiam suas ações ao “preço de face das ações”. É importante que o representante deste grupo minoritário faça parte do conselho administrativo da empresa municipal. Em caso de “holding” controladora, obrigatoriamente um dos membros do conselho de administração, deveria pertencer a secretaria de energia do estado. A proximidade do entregador da energia com o cliente tende a aprimorar esse atendimento. Um bom exemplo de funcionamento deste sistema é o Município de Belmont no Estado de Massachusetts, Estados Unidos.

A distribuição final da energia por companhia com a sede situada no município contribui para aumentar a renda municipal e diminuir a “exportação” de capital da comunidade utilizadora final de energia para outros lugares.

A prioridade do sistema elétrico nacional certamente deverá ser a garantia e segurança do fornecimento de eletricidade, buscando o menor preço médio do Megawatt-hora (MWh) e a minimização do impacto ambiental.

No planejamento do sistema elétrico é importante considerar que, ressalvada sua grande importância, este setor se constitui um segmento da matriz energética nacional que em seu planejamento deverá levar em consideração a eficiência e economicidade de utilização dos insumos energéticos.

O biênio fundamental dos cursos de engenharia inclui  cursos de termodinâmica que nos ensinam que a transformação de energia química ou térmica em energia mecânica apresenta sempre modesta eficiência. A utilização do gás e derivados de petróleo em aplicações “mais nobres” como são os meios de transporte, por sua portabilidade, na petroquímica, por serem praticamente insubstituíveis, ou no aquecimento direto industrial e domiciliar onde a termodinâmica mostra que a eficiência da transformação da energia química em energia térmica é muito alta.

No planejamento da matriz energética nacional parece lógico priorizar os combustíveis encontrados no território brasileiro e utilizar nas usinas termoelétricas que operam em regime continuo sempre que possível urânio ou até mesmo carvão procurando sempre minimizar o uso de gás e derivados de petróleo para garantir seu emprego em suas aplicações mais nobres ou até mesmo na exportação.

7.    Os três Brasis

É muito importante que haja o entendimento que o Brasil, do ponto de vista do consumo de eletricidade, é um país com 214 milhões de habitantes e dimensões continentais com diferentes regiões climáticas onde convivem na mesma área geográfica total “três Brasis” com características diferentes:

O “primeiro Brasil” é composto de um arquipélago de “ilhas de concentração habitacional e denso consumo de eletricidade”, constituído de (dados de 2017):

  • Duas grandes metrópoles formadas por São Paulo (12 milhões de habitantes e mais 9 milhões com os municípios próximos e vizinhos) e Rio de Janeiro (6,7 milhões de habitantes e mais 2,5 milhões considerando as adjacências).
  • Cinco cidades com mais de dois milhões de habitantes (Salvador – 2,9 milhões, Brasília – 2,85 milhões, Fortaleza 2,57 milhões, Belo Horizonte – 2,94 milhões e Manaus – 2,2 milhões).
  • Dez cidades com mais de um milhão de habitantes (Curitiba -1,86 milhões, Recife – 1,6 milhões, Porto Alegre – 1,47 milhões, Belém – 1,43 milhões, Goiânia – 1,41 milhões, Guarulhos – 1,31 milhões, Campinas – 1,15 milhões, São Luiz – 1,06 milhões, São Gonçalo – 1,0 milhão e Maceió – 1,0milhão).
  • Vinte e cinco cidades com mais de quinhentos mil habitantes.

Este grande “arquipélago brasileiro de centros de denso consumo de eletricidade” demanda “grandes blocos de fornecimento de energia elétrica” que normalmente são produzidos por fontes de alta densidade de produção de energia que são as hidrelétricas, as termoelétricas convencionais e as térmicas nucleares. Uma boa ilustração desse arquipélago é a visão noturna por satélite mostrada na Figura 3. Nela fica clara (embora literalmente escura) a baixa densidade de consumo de grande parte do território nacional e a desigualdade de distribuição do consumo elétrico. Pode-se, inclusive, localizar praticamente todas as “ilhas” acima mencionadas.

Figura 3: Visão noturna mostrando as “ilhas” de iluminação existentes no Brasil e vizinhanças, podendo-se perceber a faixa iluminada ao longo do trópico de Capricórnio (São Paulo, Rio) e da costa nordestina http://tecnaula.blogspot.com/2011/02/mais-uma-da-serie-um-satelite.html.

Dentro desses grandes centros urbanos de consumo com grande concentração populacional, é possível a utilização apenas complementar da fonte solar (dependendo da insolação do local) considerando que, por sua baixa densidade de produção e intermitência, será sempre uma contribuição percentualmente muito pequena em relação à demanda total de eletricidade destes centros de consumo.

As grandes concentrações populacionais da Zona Franca de Manaus, Santarém e Belém do Pará, embora situadas na Região Amazônica, são servidas pelo sistema elétrico principal e consideradas como pertencentes ao “primeiro Brasil”.

O “segundo Brasil” é constituído pelas cidades médias e pequenas e áreas adjacentes. Este segundo Brasil, embora seja uma “colcha de retalhos” formada de áreas de “media densidade de consumo”, em seu total, consome muita eletricidade. Com menor dificuldade podem aumentar a produção e o consumo das energias alternativas eólicas e solar (dependendo sempre do mapa de ventos e da insolação) pois as redes elétricas existentes são bastante ramificadas e apresentam menor dificuldade de expansão.

O “terceiro Brasil” é composto de grandes áreas, com baixa ou muitíssimo baixa densidade de consumo de eletricidade, situadas nas regiões do sertão do Nordeste e Amazônia. Estas áreas exigem análise e tratamento específico para cada micro região.

As fontes primárias renováveis, eólica e solar, são de baixa densidade na sua “produção” e variam a quantidade de energia produzida durante as vinte quatro horas do dia e com a as condições climáticas, mas têm grande potencial de aplicação no “terceiro Brasil” embora necessitem utilizar o auxilio de estocagem da energia como garantia para assegurar o fornecimento contínuo da energia ao usuário. Quando baterias são utilizadas para estocagem de energia devemos esperar aumento no valor do investimento e também que o descarte das baterias apresente o potencial de grande impacto ambiental.

A região da Bacia Amazônica pode ser interpretada como a composição de áreas com diferentes características: a primeira delas é uma a área quase plana vizinha da calha principal do Rio Amazonas e também as áreas quase planas próximas onde correm o terço final dos rios afluentes. Nessas áreas planas é pouco praticável o aproveitamento hidrelétrico para suprimento de energia elétrica aos pequenos grupamentos humanos existentes. Cada um desses grupamentos humanos nesta área plana, muito sujeita a alagamentos, exige um tratamento específico. Em sua maioria são grupamentos humanos ribeirinhos, mas sem possibilidade econômica de aproveitamentos hidroelétricos locais.

As áreas não planas da Amazônia onde se encontram os dois terços iniciais do comprimento dos rios tributários contando a partir de suas nascentes, podem ser denominadas de regiões inclinadas/serranas: a primeira região inclinada/serrana está localizada a oeste e noroeste da calha principal plana do Rio Amazonas englobando as a áreas próximas as fronteiras da Bolívia, Peru e Colômbia; a segunda área inclinada/serrana é denominada Região Norte da Bacia Amazônica onde correm os rios próximos as divisas da Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa e seus afluentes; a terceira região inclinada/serrana localizada ao sul é próxima ao planalto central brasileiro. As áreas montanhosas constituem a “borda da bacia amazônica”.

As três grandes áreas inclinadas/serranas juntas compreendem a maior percentagem da área da Amazônia Brasileira. Estas três grandes áreas (Figura 4)[4] apresentam grandes oportunidades de aproveitamentos hidroelétricos principalmente “a fio d’água“ que não provocam grandes alagamentos ou desmatamentos e podem com relativa facilidade suprir as necessidades de eletricidade dos pequenos assentamentos humanos existentes e atividades extrativistas.

Mapa Potencial Elétrico, mostrando as bacias, – Eletrobras (Eletrobras, 2017)

Mapa das Elevações do Brasil (topographic.mapa.com)

Figura 4: Mapas dos rios (ao alto), e de elevações (abaixo) assinalando regiões onde é mais viável o aproveitamento hidroelétrico na Amazônia.

Na região semiárida do “Terceiro Brasil” situada no Nordeste Brasileiro a utilização racional da energia solar e eólica pode muito contribuir muito para a melhora econômica da região. Ver Mapa da Figura 5 (CEPEL Eletrobras, 2001).

Figura 5: Atlas do Potencial Eólico Brasileiro  CEPEL/MME

Para os grupamentos humanos isolados, onde economicamente não for viável o “back-up” por redes elétricas do sistema elétrico será necessária a estocagem de energia em baterias ou a utilização de geradores diesel para garantia do suprimento de energia elétrica.

Os grupamentos humanos do “Terceiro Brasil” onde ocasionalmente houver a interligação com as redes do Sistema Integrado Nacional poderão, além do uso das fontes renováveis, utilizar o regime de exportação/importação de energia através de redes inteligentes e utilizando indiretamente o estoque regulatório de água dos reservatórios das hidroelétricas, tornando praticamente desnecessária a estocagem local de energia em baterias para garantir a regularidade do fornecimento de energia elétrica.

Denomina-se “Sistema Integrado Nacional – SIN” o servido pelas grandes linhas de transmissão (Figura 6), as redes de distribuição e seus ramais que atendem ao “Primeiro Brasil”, ”ao Segundo Brasil” e aos centros de consumo por ventura interligados do “Terceiro Brasil”. O SIN tem nas hidroelétricas sua fonte principal de produção de energia. Nota-se na Figura 6 que grande parte do território brasileiro integra esse “Terceiro Brasil” onde o SIN não está presente.

O maior potencial hidrelétrico a ser explorado pelo Brasil se concentra nas áreas da Bacia do Amazonas que não apresentam grandes elevações nem são propícias a reservatórios de grande capacidade. Na concepção atual de desenvolvimento brasileiro, essas usinas se destinam à “exportação” para a região Sudeste-Centro-Oeste SE-CO como já acontece com as usinas instaladas do Rio Madeira e, em grande parte, com a própria energia de Itaipu. Essas usinas chegaram a ser consideradas, para fins de planejamento do SIN, como integrantes da região SE-CO.

Figura 6: Sistema Integrado Nacional – SIN Mapa das Linhas de Transmissão da ONS (ONS)

A introdução de usinas a fio d’água é um grande problema não suficientemente explicitado no nosso planejamento elétrico. No início de 2005, ele foi claramente exposto no artigo “Um Porto de Destino para o Sistema Elétrico Brasileiro” na revista E&E № 49. Na Figura 7, (retirada desse artigo), mostram-se as curvas de energia natural afluente – ENA para as diversas regiões do Brasil que compõem o SIN.  A solução desse problema não é trivial. A regulação sazonal não poderá ser feita com os reservatórios já existentes e o custo da nova energia, com cinco meses do ano com cerca de 10% da capacidade máxima, deverá obrigatoriamente incluir o da energia complementar para o período seco. Esta já é, aliás, a realidade que enfrenta o consumidor que já está pagando um preço diferenciado para cobrir o custo das usinas térmicas que atualmente utilizam óleo ou gás combustível.

Energia Natural Afluente nas Regiões do SIN

Figura 7: A energia natural afluente é governada pela vazão dos rios, na medida que se amplie a participação da Região Norte, com usinas sem reservatórios, a geração elétrica passará a ter forte sazonalidade.  

Soma-se, agora, a oscilação ao longo do dia da energia eólica (atualmente) e futuramente da solar, defasadas da curva diária de consumo. Isso exige das hidroelétricas um excesso de capacidade instalada que encarece seus custos e obriga o uso do estoque regulador.

É primordial a conscientização sobre a importância de considerar a água existente nos reservatórios como estoque regulador de energia. Isso nos conduzirá a utilizar o SIN priorizando a utilização da energia proveniente da região norte nos meses que houver grande caudal e, na medida do possível, estocar água nas hidrelétricas das outras regiões que tenham  capacidade de estocar.

O caudal (vazão) dos rios que alimentam as hidrelétricas (volume de água por segundo) varia ao longo das estações do ano e também com as variações plurianuais dos ciclos hidrológicos. O funcionamento das termoelétricas que consomem biomassa também está sujeito a variações anuais e plurianuais. Torna-se, portanto evidente o conceito de adotar um “estoque regulador de energia” para compensar os períodos em que a energia disponibilizada pelo baixo caudal dos rios e a biomassa disponível seja insuficiente para atender a demanda. O “estoque regulador de energia” é a soma dos estoques de água existentes nos reservatórios das hidroelétricas.

Não existe melhor estoque regulador de energia do que a água nos reservatórios das hidroelétricas. Tal estoque regulador de energia permite atender com simplicidade e presteza as variações na demanda de eletricidade[5].

É desejável também a adoção da estratégia de priorizar no despacho as usinas hidrelétricas à fio d’água e com pequena capacidade de estocar água objetivando sempre maximizar o “estoque regulador de energia” depositado em água nos reservatórios.

As usinas nucleares, se existirem em quantidade suficiente, permitirão ao operador nacional do sistema elétrico gerenciar o sistema de forma que haja sempre o “estoque mínimo necessário regulador de energia” que permita atender as flutuações na demanda de eletricidade mantendo razoável o custo da produção da eletricidade e o baixo impacto ambiental, mesmo nos períodos de baixa pluviosidade. Sabe-se, no entanto, por simulações, que o “cobertor” do estoque nos reservatórios existentes e os possíveis de construir será curto e as térmicas convencionais (óleo, gás natural ou biomassa) deverão ser acionadas para absorver o déficit sazonal ou déficits de chuva plurianuais.  

Parece obvio que a modelagem do sistema elétrico brasileiro para produção, transporte e distribuição de energia e sua comercialização deve ser decidida com base nas peculiaridades brasileiras e não na utilização, sem a devida adaptação de conceitos “importados” do Reino Unido.  A ideologia de liberalização vem, historicamente, experimentando altos e baixos na economia brasileira. Mesmo respeitando a ideologia liberal (atualmente em alta), é necessário o entendimento do sistema brasileiro e não simplesmente arremedar as práticas comerciais de outro país.

Na composição atual do Operador Nacional do Sistema Elétrico participam representantes das empresas geradoras; o ONS pode, portanto, sofrer grande influência dessas empresas em detrimento do melhor interesse dos consumidores. Seria melhor que fosse um órgão de governo composto de funcionários de carreira trabalhando em sistema aberto tipo bolsa de valores com painéis que demonstrassem suas decisões em plenário onde os representantes das empresas pudessem estar presentes, o que agregaria maior transparência ao sistema.

Os leilões da ANEEL – Agencia Nacional de Energia Elétrica, deveriam ser realizados entre os produtores de energia da mesma fonte energética de produção e não uma competição geral entre fontes diferentes como no sistema atual, de inspiração importada. Para cada fonte primária de produção de energia seriam alocadas cotas de fornecimento de energia que comporiam o “mix”, estrategicamente planejado, para garantir o suprimento de eletricidade ao menor preço médio possível e minimizando o impacto ambiental.

Uma “frase de impacto” de um influente assessor governamental à época da implantação do sistema administrativo gerencial econômico do setor elétrico nacional, que havia participado da elaboração do Programa Computacional New Wave para auxilio nas decisões para operação do sistema elétrico, resume, deste modo, a lógica de prioridade no “despacho” das usinas (fontes) produtoras de eletricidade: “não interessa se trata – se de combustível de cocô de galinha ou fusão nuclear o que interessa é o preço da energia”. Esta frase revela a mentalidade financeira e visão curta de quem entende muito pouco de planejamento energético particularmente em se tratando de um sistema elétrico com as características do Sistema Integrado Nacional. Ela sintetiza a miopia de um gerenciamento focando exclusivamente o aspecto contábil em curto prazo e não o comportamento anual e plurianual do sistema objetivando a segurança do fornecimento e o menor preço médio da energia.

No Brasil, a produção de energia para o atendimento continuo da “base de carga” pode ser entendida como sendo a energia produzida pelas hidroelétricas, usando a média anual do caudal mínimo dos rios que as alimentam, adicionando também a média mínima da energia produzida pelas fontes eólica e solar acrescida pela energia produzida pelas usinas termo- elétricas de menor preço (nucleares e a carvão) operando em produção anual continua . Os picos diários de demanda, ou seja, o “segmento de carga” deve ser prioritariamente atendido com o estoque regulador de energia constituído pela água dos reservatórios. As hidroelétricas têm a capacidade de “seguir a carga” com mais facilidade e economicidade do que as usinas térmicas.

As usinas termoelétricas a gás e óleo são construídas com menor valor de investimento, mas funcionam com o combustível de maior preço resultando em alto preço na energia elétrica produzida. Não é aconselhável que essas usinas operem continuamente ao longo do ano. Quando não estão produzindo energia são remuneradas pelo retorno do investimento acrescido do custo operacional nesta condição e lucro. Quando solicitadas a operar pelo Operador Nacional do Sistema recebem o adicional pela energia efetivamente produzida. É assim, mas isto é vantajoso para quem?

Para funcionar produzindo grandes “blocos de energia” em regime continuo na “base de carga” as usinas térmicas que produzem energia a menor preço por Megawatt-hora são as usinas nucleares e as usinas convencionais que usam carvão como combustível.

O Brasil é prodigo em reservas de urânio e detém a tecnologia de todas as etapas do ciclo combustível nuclear desde a mineração e produção do Yellow Cake até a finalização do elemento combustível para ser usado nos reatores, passando assim por todas as etapas do ciclo do combustível nuclear. Nosso País consta da pequena lista de países que dominam a tecnologia de enriquecimento de urânio e dispõe de grandes reservas de urânio. Somente os Estados Unidos, Rússia e Brasil fazem parte desta pequena lista. Todos os demais países ou dispõem da tecnologia do ciclo do combustível nuclear ou são detentoras de reservas de urânio ou nenhuma das duas condições e pagam por isso quando é compensador.

Países sem grandes fontes de combustível como o Japão e a França dificilmente poderão prescindir da utilização da energia nuclear que pode proporcionar estoque plurianual de combustível a preços competitivos e pequeno volume de armazenamento.

Quando for feita a reformulação correta e competente do sistema elétrico brasileiro ficará evidente a necessidade utilização continua em base de carga das usinas núcleo-elétricas ficando para uso apenas ocasional (quando houver necessidade) as usinas termo elétricas convencionais a óleo e gás para completar a produção de energia em poucos meses do ano. Em virtude do grande investimento necessário, o ritmo de construção das usinas nucleares deve ser compatibilizado com as necessidades de fornecimento de energia em base de carga que assegure a existência do estoque regulador de energia adequado.

O completo entendimento do conceito de utilizar o volume de água nos reservatórios das hidrelétricas no sistema elétrico como “estoque regulador de energia” permitirá minimizar o preço médio da energia elétrica, o impacto ambiental e maximizar o uso das fontes energia renováveis menos poluentes.

8.    O Futuro da Energia Nuclear no Brasil

Deve-se ter em vista que o consumo de eletricidade continuará crescendo e que a situação atual é uma única exceção (em 50 anos) em que repetimos em 2018 o consumo de 2014. O estoque máximo de água nos reservatórios se manteve constante desde o inicio na década de 1990. A melhor forma de garantir o estoque regulador de água é considerar como energia de “Base de Carga Hidroelétrica” o caudal mínimo anual dos rios e usar usinas nucleares que são as termoelétricas de menor preço da energia (comparando-se com as demais termoelétricas) para compor a “base de carga de energia elétrica”. As grandes reservas nacionais de urânio estimulam a adoção desta opção.

A Eletronuclear desenvolveu em parceria com a COPPE, Coordenadoria de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com a ótica da “segunda era nuclear” um importante estudo de localização para construção de centrais nucleares no Brasil. As conclusões desse estudo foram divulgadas sob a forma de palestras pela Empresa. Tal estudo iniciou-se pela seleção dos locais para construção que atendem a uma extensa lista de requisitos (mais de dois mil) priorizando a segurança nuclear. Foram selecionadas quarenta opções de localização que atendem a todos os requisitos.

Cada central núcleoelétrica planejada neste estudo, ao final de sua construção, teria capacidade para comportar seis usinas nucleares tipo PWR com cerca de 1200 Megawatts que seriam construídas sequencial e paulatinamente. É recomendável que o inicio da construção de cada usina da mesma central seria defasado de cerca de um ano e meio do inicio da construção da usina anterior para otimizar a utilização da mão de obra e minimizar o preço total da construção de cada central.

Considera-se aqui que a decisão sobre a possível implantação dessas centrais seria tomada no planejamento energético global, mas os possíveis locais já estariam determinados.

Naquele estudo, foi feita a opção por usinas dotadas reatores PWR modernos com sistema de segurança passiva aprimorada que não necessitam de energia externa para remoção do calor residual produzido pelos núcleos dos reatores após o desligamento com a interrupção da reação nuclear em cadeia.

O conceito de segurança passiva aprimorada prevê que o calor residual de um reator nuclear depois do desligamento súbito, que no primeiro momento, se constitui em cerca de 2,3% da energia que o reator vinha produzindo antes da interrupção da reação nuclear em cadeia e decresce rapidamente ao longo de quarenta e oito horas para valores mínimos seja absorvido sem a necessidade de existir um sistema independente de remoção de calor que utilize energia elétrica como ocorre na maior parte das usinas nucleares atualmente existentes.

 Os modernos reatores PWR são projetados para que a dissipação desta energia residual produzida pelo núcleo do reator seja realizada por circulação natural por convecção da água no circuito primário da usina tornando-se desnecessária a utilização de energia elétrica de fonte não nuclear externa para assegurar a remoção do calor residual.

Ao término da construção, cada Central Nuclear composta de seis usinas teria a potência total instalada de sete mil e duzentos megawatts e podendo operar com o fator de capacidade de 0,9. Cada uma dessas centrais nucleares, quando dotadas das seis usinas, produziria mais energia do que a soma das energias produzidas pelas hidrelétricas da empresa Furnas ou da empresa CHESF- Centrais Hidrelétricas do São Francisco ou a metade da energia anual gerada pela usina de Itaipu.

A retomada do crescimento econômico brasileiro implicará necessariamente em aumento do consumo de eletricidade e tornará ainda mais evidente a necessidade de aumentar utilização de termoelétricas nucleares na ”base de carga” produzindo “grandes blocos de energia”. Caso seja mantida a atual intensa utilização de usinas termoelétricas convencionais a óleo e gás o alto preço da eletricidade atualmente praticado tenderá a aumentar.

Qualquer nova usina nuclear, prevista para ser construída, deverá ser planejada com a ótica da “segunda era nuclear” que prioriza a segurança e entende a energia nuclear não como sendo “a solução” para produção de eletricidade e sim com uma fonte complementar primária de produção de energia com segurança que não pode deixar de participar de um “mix” de fontes produtoras para assegurar a garantia no fornecimento de eletricidade com economicidade e minimizando os impactos ambientais.

O planejamento da geração nuclear tem que ser parte do programa de longo prazo de geração de energia para o Brasil. A periodicidade atual (planos decenais) é inadequada para isso. Em termos de planejamento energético nacional, dez anos constituem um prazo curto. O ciclo de planejamento e construção de uma instalação de grande porte produtora de energia e linha de transmissão associada é da ordem de dez anos de acordo a pratica internacional e frequentemente um empreendimento de porte escapa ao ciclo de dez anos. O lançamento do plano de longo prazo vem sendo sucessivamente adiado pelo Governo Federal.

Para o importante setor nuclear torna-se necessário:

  1. Terminar a construção da Usina Nuclear Angra 3 da Central Nuclear Álvaro Alberto em Angra do Reis.
  2. Decidir o local da construção de uma ou até mesmo duas centrais nucleares, com a possível brevidade, selecionando sua localização entre as quarenta localizações recomendadas nos estudos realizados pela COPPE e a Eletronuclear que sejam mais convenientes para atender as necessidades do Sistema Integrado Nacional. Com isto, não se perderia o conhecimento acumulado na área por técnicos altamente especializados.
  3. Decidir, a programação da construção das usinas dentro de um planejamento global, idealmente, com o início da construção da primeira central até 2022. É possível custear, ao menos parcialmente, a construção das usinas nucleares com a “venda futura de energia” garantida por acordos de governo, porém mantendo a propriedade e responsabilidade da estatal brasileira pela propriedade, operação e descomissionamento das usinas nucleares[6].
  4. Construir a instalação de armazenamento intermediaria de rejeitos da Central Nuclear Álvaro Alberto e o módulo de demonstração experimental da Instalação para estocagem, em longo prazo, de combustível nuclear queimado. Este novo conceito de estocagem concebido na Eletronuclear permite estocar por mais de quinhentos anos todo o combustível nuclear utilizado em todas as centrais nucleares brasileiras com total segurança e baixo preço, usando a remoção do calor residual por circulação natural e permitindo monitoramento seguro, simples, constante e de baixo custo. Esta solução é tecnologicamente muito mais avançada do que o antigo conceito de deposição dos rejeitos nucleares em grandes profundidades em locais teoricamente considerados estáveis que foi preconizado durante a “primeira era nuclear” e que na realidade significa “colocar o lixo debaixo do tapete”, embora essa concepção ainda conte com grande número de adeptos.
  5. Aprimorar a operação e ampliar as instalações da INB – Indústrias Nucleares do Brasil de forma que em um prazo máximo de dez anos sejam atendidas as necessidades de combustível nuclear para alimentar as usinas nucleares que estiverem em funcionamento no País.
  6. Ampliar a responsabilidade da INB para ser encarregada do transporte e armazenamento do combustível nuclear queimado dos reatores e posteriormente, quando for economicamente recomendável para o Brasil, reprocessar o combustível nuclear queimado[7], e manter a estocagem monitorada dos rejeitos usando o provavelmente as mesmas instalações construídas em região adequada para o armazenamento intermediário, no longo prazo, do combustível nuclear queimado.
  7. A CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear completará a construção do RMB – Reator de Multipropósito Brasileiro em Iperó, São Paulo, para atender as necessidades nacionais de radioisótopos, testes de materiais e combustíveis e experiências conjuntas com centros de pesquisa e universidades.
  8. Ampliar a prospecção de Urânio em território nacional.
  9. Incluir nas responsabilidades da INB a comercialização e gestão do estoque de urânio para atender as necessidades nacionais. A INB passaria a ter a atribuição de adquirir no Brasil a preços do mercado internacional em longo prazo o Yellow Cake que as mineradoras que operam no país decidirem produzir a partir do conteúdo de urânio nos minérios que exportam.
  10. Dar prosseguimento ao programa de submarinos com propulsão nuclear e, consequentemente, a todas as atividades em desenvolvimento em Aramar.

Bibliografia

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[1] 1938 (Dezembro) Fermi recebe o prêmio Nobel pela descoberta de “elementos transurânicos”, na verdade fissão de urânio e parte para os EUA. (22 deDezembro ) Otto Hahn envia texto para Lise Meiner com resultados experimentais que são interpretados por Meiner e seu sobrinho Otto Frish como fissão nuclear.  
1939 (6 de janeiro) Hahn e seu assistente Fritz Strassmann publicam seus resultados; (11 de Fevereiro)  Meitner and Frisch publicam a interpretação teórica dos resultados de Hahn-Strassmann como fissão nuclear .

[2] União Soviética 1949, Reino Unido 1952, França 1960 e China em 1964.

[3] Cerca de 14.570 ogivas sendo que 13.400 em poder de Rússia e EUA, conforme avaliação da Arms Control Association https://www.armscontrol.org/factsheets/Nuclearweaponswhohaswhat

[4] Nota: Vale a pena acessar os mapas mostrados na Figura 3. Os mapas permitem o zoom para examinar detalhes. É possível, no segundo mapa, ler a altitude do famoso encontro das águas dos rios Negro e Solimões, perto de Manaus. Onde a altitude é de 7m em relação ao mar. Isto faz com que o aproveitamento hidroelétrico do Rio Amazonas propriamente dito, formado deste encontro das águas, seja praticamente inviável para centrais de porte.

[5] Em alguns países do mundo são usadas usinas reversíveis, sendo a água de um reservatório bombeada para reservatórios a montante para armazenar energia excedente de outras usinas. Isto exige um considerável investimento que mesmo assim pode ser viável. Im considerável investimento que o Brasil ainda consegue evitar, mas pode ser uma alternativa às baterias para “armazenar vento” ou energia fotovoltaica.

[6] Na Bélgica, em uma mesma central existem usinas de diferentes proprietários o que nos sugere diferentes financiadores compradores de blocos de energia futura a ser produzida em uma mesma central nuclear brasileira. O financiamento da construção de usinas nucleares com o pagamento com a energia a ser produzida implicará na adoção de legislação que garanta a compra, o preço futuro da energia, sua correção inflacionaria e garantia cambial.

[7] Essa posição coincide com a adotada pela Política Nuclear Brasileira (Decreto Nº 9600 de 05/12/2018) e tem o significado de que o Brasil considera a energia contida no combustível utilizado aproveitável no futuro e baliza a definição do tipo de armazenamento a ser adotado que é muito importante na fase atual.

A Concretização da Política Nuclear Brasileira

A Política Nuclear começou a ser implantada antes de sua publicação

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra
carlos.feu@ecen.com e olga@ecen.com

O Decreto Nº 9600 de 05/12/2018 sobre a Política Nuclear reúne princípios profundamente amadurecidos dentro do setor correspondente.  Em nosso recente artigo na E&E 101, comentamos alguns dos aspectos do texto que institucionaliza essa Política.

Faltou comentar o que já foi realizado para implantar essa Política, até antes mesmo que ela fosse consubstanciada no mencionado Decreto. É o que estamos abordando aqui.

Foi reativado o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB[1] que centraliza na Presidência da República as decisões fundamentais da Política Nuclear. O deslocamento de sua secretaria executiva para o Gabinete de Segurança Institucional – GSI[2] da Presidência da República marcou o reconhecimento do caráter estratégico para o Brasil da energia nuclear e dos conhecimentos tecnológicos a ela associados. A decisão brasileira é análoga à posição de todos os grandes países do mundo onde existe, invariavelmente, uma centralização das decisões sobre a política nuclear no posto máximo do Poder Executivo.

O processo de elaboração da Política Nuclear permitiu criar junto ao GSI vários Grupos Técnicos com foco em temas relevantes que antecipavam os passos seguintes para sua concretização. Esses GTs contaram com a participação e coordenação direta dos setores envolvidos. Deles resultaram, por exemplo, a prioridade dada ao projeto do Reator Multipropósito Brasileiro – RMB, liderado pela CNEN através do IPEN, e a viabilização de recursos da saúde para sua concretização. Também é um ponto positivo a participação da indústria argentina no projeto, como também foi o fornecimento de urânio enriquecido brasileiro para a Argentina. Ademais, ações de efetiva cooperação como estas reafirmam a política de uso somente pacífico da energia nuclear em nosso continente. Além disso, o projeto do RMB reúne, em sua execução, as capacidades técnicas brasileiras tanto na parte civil como na militar e isto é também fator relevante dentro da Política[3].

O RMB, além da produzir radioisótopos para aplicações na saúde, agricultura e indústria e fornecer feixes de nêutrons para a investigação e aplicações, permitirá a irradiação e teste de combustíveis nucleares e materiais usados nos reatores visando avaliar a integridade estrutural destes quando submetidos a altas doses de radiação, o que não existe no país. Juntamente com os projetos da Marinha já existentes, a futura presença do RMB abre a perspectiva de reunir, no campus de ARAMAR, unidades de pesquisa e formação de pessoal que venham a reforçar o entrosamento com os institutos de pesquisa da CNEN e os cursos universitários nas áreas nuclear e correlatas.

Sem muito alarde, foi desfeita uma falha na organização nuclear vigente que era a esdrúxula subordinação ao órgão regulador CNEN das empresas INB e NUCLEP. Principalmente no caso da INB, que tem a missão de se ocupar de todas as etapas da mineração até o combustível nuclear, o fato do Presidente da CNEN ser o presidente do Conselho da Empresa gerava um evidente conflito de interesses. Este conflito, que poderia significar uma conivência do órgão regulador, parece ter favorecido, ao contrário, um aparente “excesso de zelo” que acabou inviabilizando o volumoso investimento já realizado na mineração subterrânea em Lagoa Real/Caitité. A dificuldade de licenciamento motivou seu abandono. Isto paralisou a produção de nossa única mina de urânio por mais de três anos, obrigando o País, com cerca de 5% da reserva mundial, a importar a matéria prima para suas centrais[4]. Ao final de 2018 a INB anunciou os testes operacionais para extração de urânio em anomalia próxima à atual usina, com ampliação da capacidade de beneficiamento.

O Governo que se encerrou (Temer) desvinculou a CNEN da presidência dos conselhos das empresas INB e NUCLEP. A nova estrutura, anunciada neste início de ano e de governo (Bolsonaro), resolveu o problema de forma definitiva realocando essas duas indústrias no Ministério de Minas e Energia. Isto também soluciona o desequilíbrio administrativo de se ter em um ministério de parcos recursos (MCTIC) duas indústrias de porte que absorviam boa parte de sua dotação orçamentária. No caso da INB, existe ainda uma potencial sinergia com a Eletronuclear que a realocação ministerial pode facilitar.

Em todas estas iniciativas, cabe completar a referência que fizemos em artigo anterior a membros da equipe do GSI na concretização da Política, e destacar a atuação discreta e decidida do Ministro Sérgio Etchegoyen que esteve no centro de todas estas modificações e contribuiu com seu prestígio para a aprovação unânime da Política Nuclear no CDPNB.

Paralelamente a reestruturação do Setor Nuclear que se desenhava em coerência com o reconhecimento de seu caráter estratégico, surgiu o problema criado com a paralisação das obras de Angra 3 que, a nosso ver, se deveu justamente ao não reconhecimento, na decisão de interromper sua construção, de seu caráter estratégico.

Centenas de milhões de dólares foram perdidos nesse atraso que, fundamentalmente, se deveu a aplicação, a nosso ver incorreta, da regra contábil do impairment que tornou a Eletronuclear insolvente e incapaz de utilizar empréstimos já negociados, contribuindo para arrastar a controladora Eletrobras para uma situação de insolvência prática que só foi evitada por seu caráter estatal. Uma simples decisão de rever a tarifa futura, que sempre esteve na mão do próprio Governo Federal, provocou esse prejuízo que deve chegar, em reais, a uma cifra bilionária.

Todos os movimentos já realizados levam a crer que a construção de Angra 3 pode agora ser feita com recursos de subsidiárias da própria Eletrobras ou externos, simplesmente porque foi tomada uma resolução sobre a tarifa futura. A possível participação de recursos externos segue possível e provável, sem que se coloque em risco o controle nacional da geração nuclear. A atual direção da Eletronuclear exerceu e está exercendo papel crucial no equacionamento do problema. A manutenção dos dirigentes e o anunciado apoio do Ministro do MME e da própria Presidência à conclusão de Angra 3 são sinais positivos, mas não resolveram em definitivo o problema de recursos financeiros necessários.

Também como consequência implícita do desenho da Política Nuclear, surgiu a perspectiva de parcerias com a iniciativa privada na exploração mineral. Na legislação atual existe o monopólio da exploração dos minerais nucleares. Um minerador que encontre urânio associado no minério que explora não tem nenhum interesse em revelar o achado e até o esconde das autoridades. Se a quantidade for pequena ele será obrigado a entregar à CNEN a quantidade correspondente em produto acabado sem receber nenhum pagamento. Se a presença do minério nuclear for importante, ele pode ser impedido de continuar a mineração.

A saída desse impasse já vem sendo procurada pela própria INB que detém o monopólio na mineração nuclear no caso concreto de fosfato associado ao urânio em Santa Quitéria, no Ceará. A solução aventada seria um consórcio com empresa privada. O Grupo GT-3 do CDPNB vem tratando do tema. Existe uma série de situações intermediárias onde a venda do urânio secundário extraído à INB poderia ser lucrativa tanto para o minerador como para a estatal. A solução deste impasse não precisa, em princípio, passar pela revogação do monopólio, mas provavelmente necessite de alteração na legislação. Uma das soluções seria substituir a obrigação de entrega gratuita à CNEN e oferecer a possibilidade da compra do concentrado de urânio pela INB.

No caso do tório, cujo mercado interno e externo é limitado, a solução é mais complexa. Por exemplo, na obtenção de terras raras de areias monazíticas no Brasil, o concentrado de hidróxido tório gerado (torta II) continua como um problema de resíduo radioativo ainda não solucionado. Embora não seja considerado um rejeito, atualmente é fonte de despesas para a INB juntamente com o rejeito propriamente dito.

Deve-se lembrar, enfim, que existem tecnologias na área do ciclo de combustível nuclear que se configuram como estratégicas e estão sujeitas a controles e barreiras na área internacional. Isto não inclui a fase de extração e beneficiamento de minérios. Apenas a partir da comercialização do produto purificado é que existe um componente estratégico importante. Já discutimos esse assunto anteriormente e também assinalamos que o mesmo critério pode ser aplicado aos radioisótopos nucleares onde somente a separação primária dos produtos de fissão deve ser considerada estratégica e não poderia ser entregue à iniciativa privada. Esses assuntos também têm sido objeto de discussão dos GTs do GSI/PR.

Um longo caminho no estabelecimento e concretização das estratégias adequadas à implantação da Política Nuclear deve ainda ser percorrido. Várias das diretivas deveriam ser objeto de estudos e detalhadas sob a forma de estratégias que seriam parte de um Programa Nuclear  Brasileiro que deve ser explicitado.

O Próprio CDPNB precisa preencher a lacuna existente na medida em que o Programa Nuclear Brasileiro (PNB) cujo Desenvolvimento (D) deve cuidar, não existe formalmente.

A visualização da continuidade de esforços, ao longo de vários governos de diferentes tendências, permite encarar de maneira positiva a perspectiva que ela se firme como Política de Estado e atinja seus objetivos.

[1] O CDPNB foi criado por meio de Decreto datado de 2 de julho de 2008 e foi alterado pelo Decreto de 22 de junho de 2017. O CDPNB este inativo durante o Governo Dilma, em 2017 foi reativado e sua Secretaria Executiva passou da Casa Civil para o GSI.

[2] Algumas siglas usadas neste artigo: CDPNB – Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro, CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear, CTMSP – Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, GSI/PR – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, INB – Indústrias Nucleares Brasileiras e NUCLEP Nuclebras Equipamentos Pesados, agora vinculadas ao MME – Ministério das Minas e Energia, MCTIC – Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações.

[3] Não é exatamente coincidência que o Alte. Noriaki Wada, que coordenou as atividades na área nuclear no GSI, tenha sido  indicado para comandar o Centro tecnológico da Marinha em São Paulo – CTMSP.

[4] Esta situação será resolvida brevemente com a exploração de outra ocorrência próxima a atual usina.

Comentário Recebido:

Recebemos do Alte. Othon Pinheiro da Silva, que dispensa apresentações,  mensagem que, a nosso ver, encerra uma ideia que ainda é válida:

“Na década de 1980, era funcionário do IPEN o Dr. Alcídio Abrahão um dos engenheiros químicos mais competentes da história nuclear brasileira. Sugeri insistentemente à direção da CNEN e do IPEN que construíssemos, sob a liderança do Dr. Alcídio Abrahão, um laboratório de desenvolvimento de técnicas de ” abertura do minério ” para economicamente aproveitar o conteúdo de urânio das ocorrências minerais.

Estas técnicas de abertura seriam disponibilizadas às mineradoras e seria garantida a compra pela INB do urânio a preços do mercado internacional de longo prazo. A INB manteria o estoque para suprimento de nossas usinas nucleares e venderia ao mercado internacional o excedente comunicando as vendas a AIEA ( a ABACC ainda não existia) .

Na ocasião, a ideia não foi rechaçada nem aprovada. Se tivesse sido adotada, ela poderia evitar o constrangimento do Brasil comprar urânio externamente que é quase igual ao que seria o Brasil comprar minério de ferro. A abertura correta do minério minimiza rejeitos e procura a economicidade.”

A nosso ver, essa ideia pode ainda ser aproveitada hoje. Infelizmente. não temos mais o Dr. Alcídio Abraão cuja contribuição foi importantíssima para o desenvolvimento do ciclo nuclear no Brasil, mas ainda temos o IPEN e, vale lembrar, que também o CDTN, em Belo Horizonte, tem experiência com diversos minérios e uma instalação para testar metodologias de abertura, além disso, temos agora a experiência acumulada pela própria INB.

O ponto central da ideia seria facilitar a participação da iniciativa privada na produção de minérios onde o urânio é um produto secundário, dando assistência técnica e adquirindo o produto ao preço internacional médio. Separá-lo geraria um bônus ao minerador ao invés do atual ônus de ter que entregar o produto acabado à CNEN. Dispor de fontes variadas de urânio no país aumenta a segurança no abastecimento.

Parcerias no Setor Nuclear Brasileiro: Condições de Contorno

Artigo:               

CONDIÇÕES DE CONTORNO PARA
PARCERIAS NO SETOR NUCLEAR BRASILEIRO

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra
feu@ecen.com e olga@ecen.com

Resumo

A maior participação do capital privado na área nuclear se inscreve dentro da tentativa geral de levantar os obstáculos para o desenvolvimento na área.

Como se trata de uma área reconhecidamente estratégica, por razões que são enumeradas no trabalho, tem-se que definir os limites do que é estratégico e até onde vai a participação do Estado

Palavras Chave

Angra 3, balanço de pagamento, contas nacionais, monopólio nuclear, parcerias,  RMB, radiofármacos, setor nuclear, área estratégica.

_______________________________

 

 1.   Introdução

O tema Modelos de Parcerias no Setor Nuclear Brasileiro foi sugerido aos autores pelos organizadores do SIEN 2018[1] onde foi feita uma apresentação a respeito. A proposta deste artigo foi abordar o assunto através das condições de contorno existentes para essas parcerias no Brasil atual.

As parcerias surgem como uma maneira de renovar o ambiente institucional, no quadro atualmente existente no Brasil, onde existe o monopólio estatal sobre a maior parte das atividades nucleares. Esse monopólio pode ser, desde já, considerado uma das condições de contorno a ser discutida.

A consideração inicial que se faz é que essa abertura a parcerias pode ser encarada positivamente como uma oportunidade de suavizar o monopólio para mantê-lo em seus aspectos essenciais ou, negativamente, como uma forma de enfraquecer o monopólio e até mesmo para eliminar o uso energético nuclear no País como já fizeram alguns países.

Parte-se aqui do princípio de que o domínio da tecnologia nuclear tem um caráter estratégico e é propósito nacional manter a atividade existente e preservar os desenvolvimentos já alcançados. Para que um país alcance sucesso, em qualquer atividade de importância estratégica de longo prazo, é necessário uma Política de Estado.

Na área nuclear, isto é evidente porque os projetos nucleares de qualquer natureza forçosamente ultrapassam os períodos de um ou dois mandatos presidenciais. São exemplos a construção de reatores para geração de energia, construção de submarinos nucleares, construção de instalações de qualquer etapa do ciclo do combustível nuclear e a construção de reator de teste de materiais e produção de radioisótopos.

Uma Política Nuclear precisa ter durabilidade e isto só é possível se ela for um reflexo da vontade nacional, portanto ela necessita de um consenso nacional o que significa uma aprovação ampla, embora não obrigatoriamente uma unanimidade. Um significativo progresso foi realizado, no final desse governo através do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB (Brasil, GSI/PR, 2018) que aprovou uma Política Nuclear Brasileira que esta à espera de aprovação do Presidente da República.

No Brasil, a presença do Estado nas atividades nucleares é indispensável pela própria natureza dessas atividades. Tomando o caso mais evidente, seria impossível de se imaginar, por exemplo, transferir instalações de enriquecimento usando um processo de privatização por licitação, por mais que existam interessados.

Não que isso não seja possível em outras sociedades; os EUA optaram por ter instalações de enriquecimento por ultra -centrifugação, construídas através de capitais externos, em seu território. Lá isto é possível pelo amplo Domínio do Estado sobre toda a atividade privada na área.

No Brasil Isto significaria transmitir para particulares uma tecnologia cujo derivativo pode estar associado à produção de uma arma nuclear. No caso da venda para outros países isso significaria abrir mão do esforço realizado para vencer dificuldades, dos mais variados tipos, para desenvolver o ciclo do combustível nuclear. Vale lembrar que a transferência de tecnologia nessa área nos foi vetada e o esforço teve que ser realizado com tecnologia própria.

Um progresso na área de desestatização ocorreu através da Emenda Constitucional nº 49, de 2006 (Brasil , 2016) que autorizou a iniciativa privada, sob o regime de permissão, a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas para uso médico.

Está em discussão, entre outros assuntos, no âmbito da CDPNB a maior flexibilização da comercialização e utilização de radioisótopos de maior vida média em pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais (Anexo 1).

Portanto, dependendo da área do setor nuclear em questão, pode haver ou não, interesse do País em estabelecer parcerias internas ou externas com empresas ou instituições, publicas ou privadas, sempre que mantido o controle e supervisão governamental.

2.   O Caráter Estratégico da Energia Nuclear

A questão nuclear lida com macro-objetivos nacionais. Por essa razão, esse assunto é considerado como estratégico no Brasil e em todos os grandes países do mundo sem exceção. Ou seja, a primeira “condição de contorno” da questão nuclear é que este é um assunto estreitamente ligado aos macro-objetivos nacionais.

2.1 Macro-objetivos Nacionais Ligados ao Setor Nuclear

Deve-se lembrar, primeiramente, que os objetivos que levaram ao Monopólio Nuclear (no início da década de 60 e que aos poucos foi sendo modificado) não são mais os mesmos da época do estabelecimento do monopólio. (Artigo 177 da Constituição de 88 e Art. 21 Competência).

Na época, o Brasil ainda não renunciara à posse de explosivos nucleares bélicos o que só veio a fazer por dispositivo constitucional de 1988. Também somente em 1992, com o Acordo Bilateral com a Argentina, os países renunciaram de uma forma abrangente aos explosivos nucleares, mesmo pacíficos, aceitando, em seguida, através do Acordo Quadripartito, as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica em conjunto com a ABACC.

Por outro lado, a defesa do país frente a uma ameaça de agressão nuclear segue sendo premissa de todas as nações, mas ela só se efetiva formalmente quando claramente configurada a ameaça. Defesa nuclear própria ou através de aliados são os recursos genericamente utilizados nas regiões onde a ameaça é bem definida. Há um consenso muito amplo de que nossa região (América Latina e Caribe) não esteve nem está diretamente ameaçada por armas nucleares. A estratégia regional para manter afastada a ameaça nuclear, é não desenvolver nem admitir a presença de armas nucleares na Zona Livre de Armas Nucleares, estabelecida pelo Tratado de Talatelolco.

Explicitando, Nuclear é estratégico por duas razões principais: ser fonte de energia usada para fins de defesa e ser importante na autodeterminação energética e tecnológica.

O Brasil optou por não desenvolver armas nucleares, mas considera necessário desenvolver a propulsão nuclear e usá-la em embarcações militares, como o facultam todos os tratados até aqui firmados pelo País. Acertadamente, nossa Política de Defesa inclui como tecnologias estratégicas a nuclear, a espacial e a cibernética.

Não se pode também esquecer que existem restrições tecnológicas em várias áreas, com motivação alegadamente de proliferação nuclear, que terminam por atingir muitas outras atividades econômicas. Grupos como o NSG (sigla em inglês para Grupo dos Supridores Nucleares) denominam essas tecnologias como “duais” e controlam o acesso a elas. A única maneira efetiva de se livrar definitivamente dessas restrições é ter essas tecnologias disponíveis no País. Isso é muitas vezes necessário até para não usá-la em uma atividade e adquirir os equipamentos do exterior. A autodeterminação exige, portanto, a posse de várias tecnologias nucleares ou de tecnologias a elas relacionadas.

As discussões sobre parcerias dependem do posicionamento da sociedade sobre esses itens, porque implicam em atrair capitais privados para os empreendimentos, o que pressupõe existência de segurança jurídica e institucional.

Pode-se assinalar as principais linhas de ação relacionada a três Macro-objetivos, assinalados nos parênteses:

1. Desenvolvimento Nuclear (Defesa Nacional)

  • Acompanhar o desenvolvimento da tecnologia nuclear;
  • Desenvolver e construir um submarino com propulsão nuclear;
  • Alcançar independência em todas as fases do ciclo nuclear na fabricação de combustíveis;
  • Desenvolver o Reator Multipropósito Brasileiro, RMB para teste de materiais, produção de radioisótopos e para desenvolvimento científico;
  • Alcançar o domínio de tecnologias que possam impedir outras aplicações pacíficas.

2. Geração de eletricidade (Segurança Energética e Ambiental)

  • Desenvolver a geração de eletricidade e ser capaz de participar da indústria nuclear;
  • Terminar Angra 3 e definir um programa de centrais elétricas para atender parte da necessidade de energia firme no País e para limitar a emissão de gases de efeito estufa.

3. Maior uso de radioisótopos, sobretudo na Medicina (Segurança na Saúde)

  • Maior disponibilidade de radioisótopos, principalmente para usos medicinais;
  • Reator Multipropósito.

No que se refere ao Macro-objetivo de Segurança Institucional e Jurídica existem também providências a serem tomadas na área nuclear, no entanto, as linhas de ação ainda não estão definidas e devem se subordinar à Política Nacional Nuclear que foi aprovada pelo CDPNB e aguarda ser oficializada. Elas não envolvem diretamente o tema parcerias, mas são importantes para criar o ambiente adequado para que se desenvolvam.

Dentro desse macro-objetivo, é importante definir uma estrutura de comando do Setor Nuclear, ligada ao mais alto nível do Governo. A ativação do CDPNB com sua Secretaria Executiva localizada no Gabinete de Segurança da Presidência da República – GSI-PR é parte disto. Também é necessário equacionar a função regulatória, levando em conta as características de cada um dos macro-objetivos. Isso já foi feito para o caso do submarino nuclear com criação de agência específica para licenciamento do submarino nuclear (Marinha do Brasil, 2018) a Agência Naval de Segurança Nuclear e Qualidade.

Igualmente, para a produção, comercialização e aplicação de radioisótopos, uma estrutura mais ágil e descentralizada é necessária para a regulação. Finalmente, as funções executiva e regulatória da CNEN devem ser feitas por entidades distintas. O licenciamento de grandes instalações precisa ter um processo unificado, de preferência de uma única agência, certamente que com consulta às demais. Atualmente, existem posições divergentes das agências que chegam a impor exigências contraditórias. Há países que progrediram na unificação do processo decisório e isso é crucial para grandes empreendimentos.

2.2  Nuclear sendo Estratégico: É Necessária a Presença do Estado?       

Admitindo-se que o Setor Nuclear é estratégico, ainda resta a questão se é necessário um efetivo controle do Estado sobre suas atividades. Um forte indicador disto é aquilo que é feito, na maioria dos grandes países. Eles exercem o monopólio sobre o Setor. Pode ser um monopólio direto, como o da França, Coreia do Sul, Rússia, China e Argentina ou um forte domínio do Estado sobre o Setor como exercem os EUA através do Departamento de Energia e dos Laboratórios Nacionais e o Japão pela simbiose existente Governo/Indústria. Isto para ficar nos atores importantes na indústria nuclear mundial e em nossa vizinha Argentina, muito ativa na indústria de reatores de investigação.

Deve-se notar que mesmo em países que renunciaram ao uso energético nuclear na área civil, como a Itália, ou estão renunciando, como a Alemanha, a decisão foi de Estado. Assim como o foi a decisão de, contraditoriamente, continuar compartilhando (com os EUA, via OTAN) armas nucleares de destruição em massa, estacionadas em seu território.

No Brasil, a decisão pelo uso somente pacífico da energia nuclear é uma decisão constitucional, portanto estratégica, assim como o é a de estatizar grande parte da atividade nuclear. Trata-se, portanto, de decisões tomadas no maior nível hierárquico do País cuja essência deve, em princípio, ser mantida.

O que a Constituição estabelece para o monopólio é resumido abaixo referido ao Artigo 177 da Constituição de 88 sobre o Monopólio da União e Art. 21 da Competência:

Art. 177 § V “Explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre: pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas, sob-regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.” (Redação dada pela Emenda Constitucional № 49, de 2006). Sob Permissão são autorizadas: Comercialização e a utilização de pesquisas e usos médicos, agrícolas e industriais de radioisótopos (de modo geral), bem como, produzir isótopos meia vida igual ou superior a 2 horas. 

Ao se pensar em parcerias, pensa-se, logicamente em participação da iniciativa privada nas atividades ainda sujeitas ao monopólio. Como ponto de partida, é bom lembrar que o monopólio não exclui automaticamente essa participação. Existem vários exemplos históricos de participação de empresas, inclusive estrangeiras, em plena vigência do monopólio, anteriores, no entanto, à atual formulação constitucional. É preciso levar em conta que permanecem válidas as razões maiores que determinaram a atual redação constitucional: o uso da energia nuclear é para fins pacíficos e objeto de decisões de Estado. As modificações, se necessárias, devem preservar esses princípios inscritos na Lei Magna.

A seguir, procura-se especificar dentro dos três macro objetivos identificados, porque são necessárias parcerias, dando destaque à geração de eletricidade, preocupação maior do assunto parcerias no momento atual.

2.3 Estatizar é sempre Bom para a Autonomia Tecnógica?

Na contramão dos que consideram que somente entidades estatais podem atuar em áreas estratégicas, há o exemplo da atuação da Orquima S. A. da época de Krumholz na área de terras raras (de Souza Filho, et al., 2014). Nas décadas de 1940 e 1950, por meio da iniciativa privada (ORQUIMA S.A.), sob liderança de Pawel Krumholz, o país dominou o processo de extração, separação e obtenção de óxidos de terras raras de elevada pureza (chegando a 99,99%).

A empresa processava cerca de duas mil toneladas de monazita por ano, chegando, por exemplo, a fornecer Eu2O3 para a fabricação de barras metálicas destinadas ao controle, por absorção de nêutrons, do reator do primeiro submarino nuclear do mundo, o Nautilus. Em 1962, juntamente com Krumholz, o Brasil chegou a produzir cerca de 10 g de Lu2O3 de alta pureza
(> 99,9%); era a maior quantidade desse composto já produzida no mundo.

Neste caso, a estatização da Orquima, através da Nuclemon (subsidiária da Nuclebras) não resultou em progresso na área e o Brasil passou a mero exportador de matéria prima deixando de produzir e exportar terras raras. É verdade também que decorreu da atividade da Orquima, um reconhecido passivo ambiental, consubstanciado na chamada “torta II” um “rejeito” rico em tório, mas também contendo seus descendentes radioativos que ficou nas mãos da INB.

Como conclusão, as parcerias do capital privado na energia nuclear podem ser úteis na ajuda do financiamento daquelas áreas que já são economicamente viáveis como aconteceu com as aplicações de radiofármacos de vida curta na medicina nuclear.

Sobre a participação do capital externo, no entanto, sempre se deve ter em conta em que medida a possível desnacionalização estaria na contramão do reconhecido caráter estratégico da atividade e se isso não fragiliza a própria segurança energética. Feita esta análise, não há porque se rejeitar essa participação, se submetida às razões de Estado.

3.   As Parcerias Possíveis

3.1 Parcerias no Objetivo um:
Desenvolvimento Nuclear e Submarino

No Objetivo Desenvolvimento Tecnológico e Submarino busca-se parceria com quem está disposto a colaborar com a fabricação de submarinos, mantida a independência nas atividades tecnológicas relacionadas ao ciclo do combustível nuclear. Conforme já foi citado, a transferências de tecnologia externa é, de modo geral, bem-vinda, mas existem limitações s que temos que superar com nossos próprios recursos.

No que concerne à construção da parte convencional de submarinos foi criada a Itaguaí Construções Navais, parceria da estatal francesa Naval Group com a Odebrecht (goldenshare Marinha através de Emgepron) na construção de submarinos e que prevê a construção de quatro submarinos convencionais e um submarino nuclear sendo a parte nuclear de desenvolvimento próprio. Essa associação é uma prova cabal de que é possível uma parceria, inclusive com praticamente o total das ações privadas e com forte participação externa (Poder Naval, 2009).

A parceria interna entre o setor civil e militar deveria ser reforçada no País e é uma oportunidade importante de desenvolvimento do ciclo do combustível e no aproveitamento de seus spin-offs. A Parceria entre a Marinha e a CNEN foi muito profícua no passado, com destaque na participação do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN. Seria desejável que essa parceria interna do setor civil e militar fosse mantida de uma maneira institucional. O IPEN-SP dispõe já atualmente de toda a tecnologia para fabricação de elementos combustíveis tanto do reator IEAR1 como da crítica MB01, e do Reator Multipropósito Brasileiro, mas quem dispõe da etapa de enriquecimento a 19,99% e está desenvolvendo a etapa de conversão em escala semi- industrial é o Laboratório de Aramar que pertence à Marinha.

No projeto do Reator Multipropósito a cargo do IPEN/CNEN, que será localizado no município de Iperó no Estado de São Paulo, existem as parcerias com a INVAP, empresa Argentina, e com a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S. A. – AMAZUL. Além da produção de radioisótopos, o RMB também tem como funções básicas a realização de testes de irradiação de combustíveis nucleares e materiais estruturais utilizados em reatores de potência, bem como a realização de pesquisas científicas com feixes de nêutrons. Para este fim serão necessárias parcerias com universidades e centros de pesquisa que ora já se iniciam.

A ampliação da Usina de Enriquecimento Isotópico de Urânio na INB, para produção de material que será utilizado nos reatores de potencia continua sendo feita em cooperação com a Marinha do Brasil e esse desenvolvimento se dá com tecnologia autônoma.

Por sua vez, as parcerias com empresas privadas para o fornecimento de componentes dos elementos combustíveis devem ser facilitadas e desburocratizadas.

Existe a possibilidade de uma possível abertura no caso particular da mineração. Na área de mineração é possível a formação de associações minoritárias e isto já ocorreu no passado dentro do monopólio. A Nuclam era uma companhia mista formada na época com 51% da Nuclebras e 49% da Urangeselschaft, com compra de minério associado e compra de serviço de mineração.

A flexibilização do monopólio pode ser benéfica na área de mineração e beneficiamento de urânio, mantendo-se a comercialização no monopólio. Um ponto muito importante a ser considerado é que um estoque estratégico para atender usinas nucleares nacionais (atuais e futuras), os reatores de pesquisa e o submarino deveria estar sob ativa supervisão estatal.

3.2  Parcerias no Objetivo dois:
Construção e Operação de Usinas Nucleares (Geração de Eletricidade)

Vale lembrar que dentro do monopólio, não há restrições à contratação de terceiros, em uma ampla faixa de atividades, como ilustram os exemplos:

  • Angra 1 praticamente “chave na mão”, teve a supervisão da NUCON (empresa do grupo Nuclebras), sendo a proprietária Furnas;
  • Existe a participação tradicional de empresas privadas (nacionais e estrangeiras) na construção, montagem e fabricação de alguns componentes das usinas nucleares;
  • Durante a época da vigência do Programa Nuclear com a Alemanha, empresas mistas, muitas vezes com predomínio técnico dos alemães, participavam nas diversas etapas do ciclo nuclear.

Outros tipos de participação são ainda possíveis dentro do atual monopólio:

  • Parceria na operação da NUCLEP, área não sujeita ao monopólio;
  • Fornecimento de grandes equipamentos e serviços;
  • Participação financeira externa na Eletronuclear, sempre com caráter acionário minoritário.

Ou seja, a participação acionária na Eletronuclear, chave no processo de parcerias, não é impedida pela Constituição. No estabelecimento das condições de funcionamento dessa parceria podem surgir obstáculos legais que podem vir a necessitar de ajustes legislativos e, eventualmente, modificações constitucionais pontuais que preservem os princípios nela consagrados.

Do ponto de vista do cumprimento dos objetivos, é essencial que se observem três pontos essenciais:

  • Transferência tecnológica deve ser determinante na escolha do parceiro;
  • Devem ser consideradas as limitações de endividamento externo, essas considerações são ainda mais importantes em áreas onde possa ser rompido o monopólio.

Sobre a questão do endividamento, ou de maneira mais abrangente, do passivo externo considera-se necessário destacar alguns pontos que serão abordados no item quatro. São questões fundamentais também na abordagem das privatizações a definição e o significado de empresas “não residentes” e “residentes”.

3.3 Parcerias no Objetivo três:
Uso de Radioisótopos

Desde a década de 60, a CNEN, por meio dos seus Institutos de Pesquisa, evoluiu dos trabalhos pioneiros feitos no IPEN, para uma verdadeira indústria, fornecendo rotineiramente 38 produtos a muitos hospitais, clínicas e indústrias. Esses radioisótopos são tanto produzidos em reatores nucleares de pesquisa quanto em cíclotrons, e essenciais ao abastecimento das atividades de aplicações de radioisótopos no país.

Com a flexibilização do monopólio (Emenda Constitucional – EC, № 49/2006), que alterou dispositivos da Constituição de 1988, esse panorama foi modificado e é crescente a presença de empresas privadas na área de aplicações de radioisótopos na medicina e diagnósticos, o que mostra o acerto da medida. O setor privado teve permissão de investir nessa atividade (fabricação, comercialização e uso), podendo produzir radiofármacos com meia-vida de até duas horas, como é o caso da fluordesoxiglicose (18F-FDG), radiofármaco amplamente utilizado em diagnósticos.

Após a aprovação dessa Emenda, o número de cíclotrons produtores do 18F-FDG e, consequentemente, a quantidade de clínicas de medicina nuclear que os utilizam cresceram muito.

Na área de meias vidas mais longas, a comercialização e uso se dão mediante permissão. Deve-se considerar que a maior parte do uso de radioisótopos nessa área se dá com Molibdênio importado, gerando Tecnécio. O gerador de Tecnécio é feito no Brasil unicamente no IPEN, por constituir monopólio da união uma vez que seu precursor (Molibdênio-99) é subproduto da fissão de “minério nuclear”.

A separação é simples por passagem de um solvente, não deveria ser considerada “fabricação” e poderia ser feita por empresas particulares. A limitação a uma maior participação da iniciativa privada está vinculada à interpretação do termo fabricação que está incluído no monopólio. O grupo de trabalho GT-3 criado pelo GSI/PR esteve tratando do assunto já emitiu uma primeira proposta de ações.

Deve-se assinalar que a produção de Mo-99 a partir da fissão, envolve irradiação de urânio, separação de produtos de fissão, portanto é tecnologia sensível, próxima do reprocessamento, e faz parte do monopólio. O RMB que deverá produzir isótopos o fará por essa tecnologia.

4.   As novas regras das Contas Nacionais e do Balanço de Pagamentos

Sem muito alarde, regras do FMI para o Balanço de Pagamentos e mudanças no Sistema de Contas Nacionais, capitaneadas pelo Banco Mundial (E&E № 96) alteraram profundamente as Contabilidades Externa e Nacional do Brasil, tendo como resultado:

Investimentos e reinvestimentos de empresas não residentes no Brasil em suas filiais passaram a fazer parte da Dívida Externa do País. Recentemente os investimentos diretos em fundos de renda fixa de não residentes, também passaram a integrar a dívida externa.

A produção de empresas sobre controle de não residentes passou a ser considerada integrada ao PIB dos países dos acionistas residentes; isso se aplica especificamente à eletricidade, ou seja, a eletricidade produzida no País por empresa não residente entrará no rol das importações se consumida no Brasil, ainda que produzida com a energia hídrica (ou nuclear) brasileira.

De acordo com as regras do Balanço de Pagamentos, qualquer investimento externo realizado no país entra para o passivo externo brasileiro, registrado na Posição Internacional de Investimentos, não importando, se ostenta a classificação de investimento de risco ou aplicação de capital.

Para quem acha que isto não é importante, é útil lembrar que foi apenas uma opção contábil, o registro desse passivo como dívida externa. Isso aconteceu recentemente (2014) quando 120 bilhões de “investimentos diretos” em renda fixa foram integrados à dívida externa brasileira.

A classificação de empresas, nas Contas Nacionais e Externas (normas FMI), passou a ser de Residente e Não Residente.

Empresa Residente é a empresa que têm efetivo controle de indivíduos residentes no País. Está classificação ainda não foi inteiramente implantado e sua vigência dependerá de mudanças na contabilidade das empresas. Normas internacionais, implantadas no Brasil de forma praticamente automática pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, com predominância das associações empresariais, se encarrega dessas mudanças. No caso do Setor Elétrico, a ANEEL, na prática, simplesmente homologa o “Pronunciamento” do CPC.

Como já assinalado, investimentos e reinvestimentos externos em empresas residentes, com participação de capital de não residentes, são incorporados à divida externa.

Desta forma, a produção de eletricidade por empresas de capital externo no Brasil ou terá seu investimento e reinvestimentos registrados na dívida externa (empresas consideradas residentes) ou será classificada como produção externa (empresa não residente) e considerada importada se consumida no Brasil.

Esse é um fato não discutido atualmente no açodado processo de privatização. Por isso, faz uma enorme diferença quando privatização significa uma desnacionalização, entre a venda para não residentes ou uma venda para residentes no País.

A venda para não residentes implica em aumento imediato da dívida externa ou na desnacionalização definitiva (mudança de nacionalidade) do seu produto. Se isso se faz a preços aviltados pela crise, a consequência pode ser a perda definitiva das reservas naturais, sujeitando-se o País a importar seus próprios recursos.

Notar ainda que a determinação da pátria do capital não se dá mais por nacionalidade, mas, por residência[2]. Portanto, não basta assegurar que os setores privatizados continuem em mãos de nacionais, mas assegurar que continuem em mãos de residentes no País.

Para os que acreditaram que a dívida externa desapareceu, porque estaria anulada por nossas reservas internacionais, é bom lembrar que existem para elas dois valores:

  • O que aparece nas Notas à Imprensa do Banco Central (comparado às reservas) é a dívida externa “sem as operações intercompanhia e títulos de Renda Fixa negociados no mercado doméstico” cujo total, em dezembro de 2017 era de 321 bilhões de dólares;
  • O que incorpora os valores considerados pelo FMI que consta nas planilhas anexas do próprio Boletim que é mais do dobro da tradicional. Esta é a que será divulgada pelo Banco Mundial e considerada nas análises de risco que é de 684 bilhões de dólares.

A Tabela 4.1 mostra os valores da dívida externa no seu conceito tradicional e considerando os adicionais recomendados pelo FMI, indicados por um asterisco. São indicados ainda os percentuais do PIB envolvidos e do total das exportações bem como a dívida líquida nas duas hipóteses.

Tabela 4.1: Componentes do Passivo e da Dívida Externos

 ExternosUS$ bilhões% PIB% Export.
Dívida Externa Bruta
(conceito tradicional)
32118% 
Operações Intercompanhia (*)23613%112%
Títulos de Renda Fixa detidos
por não residentes (*)
1277%60%
Dívida Externa Bruta
(normas FMI)
68438%326%
Reserva 38621%184%
Dívida Externa Líquida “Tradicional”-65-4%-31%
Dívida Externa Líquida29817%142%
Passivo Bruto da PII158088%752%
Ativo da PII85848%408%
PII Líquido72240%344%
PIB estimado1800100%857%
Exportações21012%100%

(*) Acréscimos à Dívida resultantes de modificações introduzidas nas Contas Nacionais

A Figura 4.1 mostra estes valores para 2017 e realça o tamanho da Dívida Externa com a inclusão dos novos componentes e compara o resultado com o montante das reservas internacionais.

A dívida externa líquida, não considerando os aditivos do FMI é negativa (321 – 386 = -65 US$ bi). Na contabilidade do FMI, a dívida externa líquida brasileira é de cerca de 300 bilhões de dólares, equivalente a 17% do PIB e 142% das exportações de do ano de 2017. Chama a atenção o valor do Passivo Bruto apurado na PII que já atinge a 88% do PIB e cerca de 750% do valor das exportações. Já ficou demonstrado, que não existe barreira sólida entre o Passivo e a Dívida e não será nenhuma surpresa que novas transferências se verifiquem.

Figura 4.1: Comparação da dívida externa e reservas ao final de 2017
(*) Parcelas acrescidas por recomendação do FMI.

A Figura 4.2 mostra o processo de formação do Passivo Externo Bruto, apurado pela Posição Internacional de Investimentos, para o final de 2017. São resultados da contabilidade externa do Brasil, orientada pela Sexta Edição do Manual do Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimentos do FMI, conhecido pela sigla em inglês BPM6 (International Monetary Fund, 2009).

Aplicações em ações e outras de renda variável, outros investimentos financeiros e em bens reais são lançados no passivo externo da PII. Os rendimentos auferidos realimentam o passivo quando não são remetidos ao exterior. No caso das aplicações de renda fixa, elas foram inicialmente lançadas como investimento de risco e transferidas recentemente (2014) do “outros passivo” para a dívida externa. Os investimentos intercompanhia (matriz x filial) entram na dívida externa; os reinvestimentos também são nela lançados. Finalmente, os empréstimos, realimentados pelos juros, formam a dívida externa tradicional.

Figura 4.2: Formação do Passivo Externo na apuração da Posição Internacional de Investimento, usando a metodologia do Manual do FMI.

O Brasil e muitos outros países ditos “em desenvolvimento” passaram pelo trauma causado pela dívida externa dos anos oitenta, resultante de créditos baratos (petrodólares) dos anos setenta. A partir deste e outros traumas sucessivos passou-se a considerar os empréstimos externos como causadores da dívida externa e das crises.

Este trauma tem certa razão já que a dívida externa é considerada uma responsabilidade dos países que devem garanti-la frente aos bancos internacionais e demais fontes de financiamento. Também os credores passaram por traumas e isto motivou o FMI e o Banco Mundial a adotar o Consenso de Washington nos anos oitenta e, nos anos noventa, foram modificados, com a liderança dessas duas entidades, as Contas Nacionais, o Balanço de Pagamentos e criada a contabilidade de estoques de capital que é a Posição Internacional de Investimentos. Vários mecanismos de defesa dos credores tradicionais (de empréstimos) e dos novos credores de investimentos externos foram instalados através das modificações na contabilidade que fazem parte, portanto, do Pós-Consenso de Washington (E&E 96).

Foi por esta razão, que o Brasil providenciou uma reserva internacional que funciona como garantia da dívida. Por isso, é altamente conveniente para o governo comparar nossa dívida externa com os empréstimos de curto prazo ou com a dívida no conceito tradicional. Ao final do ano de 2017, tínhamos, neste conceito, uma dívida externa líquida negativa. Em 2010, o governo havia declarado á população o “fim da dívida externa”[3]. O que não foi esclarecido é qual o conceito da dívida externa estava em discussão.

Foi vendida aos países em desenvolvimento, dentro do pós-Conseçnso de Washington a ideia que eles deviam se abrir aos investimentos externos, considerados como fator de progresso o que não afetariam a dívida externa. Essa á ainda a linguagem usada nos países periféricos para uso interno quando se quer justificar a abertura a investimentos externos. Por essa razão, segue sendo conveniente a ambiguidade em relação ao montante da dívida externa.

O que a contabilidade externa do FMI, adotada pelo Brasil, mostra agora é uma visão que tem um viés do que é conveniente para os países credores, mas ao mesmo tempo, é realista quando assinala a pressão exercida pelo Passivo Externo sobre as economias receptadoras do capital. Essa pressão cria uma dependência que ameaça essas economias, mas ainda não foi incorporada nas discussões econômicas.

A dívida externa tradicional é apenas a ponta do iceberg e as duas dimensões da dívida externa já foram temas da presente campanha eleitoral, com contestações sobre se ela havia desaparecido ou não em 2010.

O Passivo Externo Bruto no final de 2017 já era 88% do PIB e 752% de nossas exportações anuais. Cada vez que vendemos nossas empresas ou jazidas para os não residentes, o passivo externo aumenta e, na melhor das hipóteses, também aumenta a dívida externa. Na pior, a jazida e o PIB futuro a ela associado deixam de ser nossos.

O FMI está nos prevenindo disto.

5.   A Possibilidade de Autofinanciamento de Angra 3

A tarifa de 2018 para Angra 1 e 2 é 240,8 R$/MW com uma geração média de 1572 MW que corresponde a 3,31 R$ bi por ano. Se aplicada a tarifa que se espera conseguir para Angra 3 (suposta 400 R$/MWh) para Angra 1 e 2 e se isto constituísse um fundo específico ter-se-ia um adicional de cerca de 2,2 bilhões de reais por ano que seriam praticamente suficientes para terminar Angra 3 em 6 anos.

Pode-se ainda pensar em uma tarifa comum para a energia nuclear que poderia ser um pouco menor que essa e com isso haveria condições para financiar parte de Angra 3 e facilidades para créditos adicionais.

Como isso pode ser criado como fundo, nele não incidiriam praticamente taxas e o País estaria  livre de juros sobre a nova parte.

Isso significaria um aumento de 67% sobre 2,5% da produção de eletricidade ou 1,67% sobre o custo total de produção e menos de 1% sobre a tarifa do consumidor (só seria afetado o custo sem impostos).

É claro que seria necessário aprofundar as avaliações e encontrar o caminho legal para chegar a esta decisão e trabalhar junto à sociedade para a aceitação da energia nuclear como estratégica e levar em conta suas contribuições (energia limpa) para a redução das emissões de gases de efeito estufa e a estabilidade do Sistema.

6.   Conclusão

Como conclusão, as parcerias do capital privado na energia nuclear podem ser úteis na ajuda do financiamento daquelas áreas que já são economicamente viáveis como aconteceu com as aplicações de radiofármacos de vida curta na medicina nuclear.

Ao se fazer parceria de uma área específica com a participação de capital externo, deve-se ter em conta se isso não está na contramão de seu reconhecido caráter estratégico e se não fragiliza a própria segurança energética ou o domínio do ciclo do combustível nuclear. Também devem ser levadas em conta as limitações provocadas pelo endividamento externo.

No caso da participação externa, a meta principal seria obter a tecnologia e capacitar a indústria nacional em troca da participação do parceiro no mercado interno. Para estar em melhores condições de barganha é preciso contar com o capital interno, ainda que parcialmente.

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Anexo 1: Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB

O Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB) foi criado pelo Decreto de 2 de julho de 2008 e alterado pelo Decreto de 22 de junho de 2017. O CDPNB é coordenado pelo GSI/PR e tem como missão assessorar diretamente o Chefe do Poder Executivo, por meio de um colegiado de alto nível, no estabelecimento de diretrizes e metas para o desenvolvimento e acompanhamento do Programa Nuclear Brasileiro, a fim de contribuir para o desenvolvimento nacional e para a promoção do bem estar da Sociedade Brasileira.

Na primeira reunião plenária do CDPNB nesta nova fase, dia 18 de outubro de 2017, além do Regimento Interno foi aprovada a criação de quatro grupos técnicos, para tratar de temas relevantes para o setor nuclear brasileiro:

  • GT-1: elaborar a proposta de Política Nuclear Brasileira – Coordenado pelo GSI;
  • GT-2: analisar a conveniência da flexibilização do monopólio da União na pesquisa e na lavra de minérios nucleares – Coordenado pelo MME;
  • GT-3: analisar a conveniência de ampliar a flexibilização do monopólio da União na produção de radiofármacos – Coordenado pelo MCTIC e Ministério da Saúde;
  • GT-4: propor termo de cooperação entre as partes envolvidas no desenvolvimento e operação do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) – Coordenado pelo MCTIC.

Outros Grupos Técnicos estão organizados ou em organização para atender outras áreas específicas, mas não tiveram ainda sua constituição divulgada oficialmente.

Isto significaria transmitir para particulares uma tecnologia cujo derivativo pode estar associado à produção de uma arma nuclear.

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Notas:

[1] Seminário Internacional de Energia Nuclear, realizado no Rio de Janeiro entre 25 e 26 de julho de 2018 no Espaço Furnas.

[2] Se os irmãos Batista da Free Boi houvessem decidido por fixar residência nos EUA, como aparentemente tentaram, boa parte da carne brasileira poderia passar a ser americana.

[3] Em Julho de 2007 o site das Organizações Globo anunciava (sempre procurando assinalar o viés negativo ) “Dívida externa brasileira sobe para US$ 225 bilhões em junho,  para colocar na segunda manchete: Em maio, o BC estimava a dívida em US$ 218,329 bilhões.  Reservas internacionais cresceram e atingiram US$ 253 bilhões. http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/07/divida-externa-brasileira-sobe-para-us-225-bilhoes-em-junho.html

Bibliografia

Brasil . 2016. Emenda Constitucional nº 49 de 08/02/2016. Presidência da República – Casa Civil. [Online] 08 de fev de 2016. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc49.htm.

Brasil, GSI/PR. 2018. Resolução GSI/PR nº 2, de 11.01.2018. MCTIC. [Online] 11 de janeiro de 2018. http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/legislacao/outros_atos/resolucoes/Resolucao_GSI_PR_n_2_de_11012018.html.

de Souza Filho, Paulo C. e Serra, Osvaldo A. 2014. TERRAS RARAS NO BRASIL: HISTÓRICO, PRODUÇÃO E PERSPECTIVAS. Quim. Nova. 2014, Vol. 37, Nº 4, pp. 753-760.

International Monetary Fund. 2009. Balance of payments and international investment position manua- 6th ed. Washingon D.C. : IMF Multimedia Services Division, 2009. ISBN 978-1-58906-812-4.

Marinha do Brasil. 2018. Marinha do Brasil cria a Agência Naval de Segurança Nuclear e Qualidade. Portal Orbis Defense. [Online] 09 de fev de 2018. https://www.marinha.mil.br/sinopse/marinha-do-brasil-cria-agencia-naval-de-seguranca-nuclear-e-qualidade.

Poder Naval. 2009. Itaguaí Construções Navais. Odebrecht fica com 59% do capital. Poder Naval. [Online] 10 de set de 2009. https://www.naval.com.br/blog/2009/09/10/itaguai-construcoes-navais-odebrecht-fica-com-59-do-capital/.