A Dívida Externa Reapareceu?


Economia e Energia – E&E    Nº 97, outubro a dezembro  2017
ISSN 1518-2932

Artigo:

A Dívida Externa Reapareceu?

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra

 Resumo

A Dívida Externa Bruta em setembro de 2017 aparece em dois valores bastante diferentes (321 e 684 bilhões de dólares) nos documentos do Banco Central. O valor publicado pelo Banco Mundial para 2016 é de 543 bilhões de dólares. A inclusão ou não de itens recomendados pelo FMI explica essa diferença. A adoção de um ou outro valor mexe ainda com o marco do muito celebrado fim da dívida externa nacional.

Palavras Chave

Brasil, dívida externa, posição internacional de investimentos, BPM6, FMI, juros internos, indicadores da dívida.

1.   Qual é o Valor da Dívida Externa?

Através de Nota para a Imprensa relativa ao Setor Externo (1) o Banco Central – BC divulga mensalmente o valor da Dívida Externa Bruta do Brasil que em setembro era de US$ 321 bi. O noticiário especializado dos jornais brasileiros registra, sem destaque, esta cifra que é tranquilizadora, frente ao nível de reservas externas existente, de US$ 386 bi. Ou seja, as resevas excederiam o montante da dívida em US$ 67 bi. As “Séries Históricas da Dívida Externa Bruta” (2) registram, no entanto, um valor que é mais que o dobro do apresentado à imprensa interna e que atingiria, ao final de setembro, US$ 684 bi. Este é um valor muito mais próximo do que consta para o Brasil nos Indicadores de Desenvolvimento do Banco Mundial (3) para 2016 de US$ 543 bi.

A razão dessa aparente discrepância pode ser vista na planilha (4), que o BC divulga como anexo à mencionada Nota que mostra, em seu Quadro XXVII, os componentes adicionais e o total da Dívida Externa, designado sob o eufemismo de “dívida externa bruta, inclusive operações intercompanhia e títulos de renda fixa negociados no mercado doméstico e detidos por não residentes”.

O valor maior resulta da aplicação de normas do FMI, periodicamente revistas. A Sexta Revisão do Manual do FMI para Balanço de Pagamentos, conhecida pela sigla inglesa,  BPM6) (5), foi adotada pelo Brasil a partir de 2016 (dados de 2015) tendo o BC recalculado também dados de anos anteriores. Os impactos da última revisão da metodologia do Balanço de Pagamentos, em diversos parâmetros, foram anteriormente comentados nesta revista (6).

2.   Acréscimo à Dívida Externa pela Metodologia do FMI

O quadro dos componentes da dívida externa e valores que podem ser relacionados a ela estão resumidos na Tabela 1.

Examinando a Tabela 1, observa-se que os itens incluídos para atender a normalização do FMI mais que dobram o valor final da dívida externa. O Brasil resistiu como pode a incluir as “operações intercompanhias” (geralmente do tipo empréstimo matriz X filial), em sua dívida externa. Afinal, o Governo é responsabilizado pelo seu montante ente à comunidade internacional e ao próprio FMI. Esta resistência é compreensível porque os órgãos de governo têm pouco controle sobre este tipo de negócio e até mesmo sobre os valores envolvidos.

Parte desses recursos pode, por exemplo, ser alocada a investimentos justificados pela transferência de máquinas entre unidades do exterior para o Brasil, que pode incluir material obsoleto, cujo valor comercial é dificilmente verificável. Esse problema de registro das operações entre empresas é anterior à última revisão do Manual.

Tabela 1: Valores Relacionados à Dívida Externa
em Setembro de 2017

 US$ bilhões% PIB% Export.
Dívida Externa Bruta
(conceito tradicional)
32118%153%
Operações Intercompanhia (*)23613%112%
Títulos de Renda Fixa detidos por não residentes (*)1277%60%

Dívida Externa Bruta

 (normas FMI)

68438%326%
Reservas Internacionais38621%184%
Dívida Externa Líquida29817%142%
Passivo na Posição Internacional de Investimentos PII158088%750%
PIB estimado para 20171800100%857%
Exportações previstas para 201721012%100%

(*) Valores acrescidos à Divida Externa a partir de normas do FMI

A maneira de contornar essa divergência foi informar, para uso interno, o valor tradicional da dívida (primeira linha) e, para as autoridades internacionais o valor “incluindo as operações intercompanhia” que corresponda a soma das duas primeiras parcelas. Este valor foi de US$ 557 bilhões em setembro de 2017. Ele explica o dado que consta da Base de Indicadores Mundiais de Desenvolvimento – WDI, publicada pelo Banco Mundial (3) que é de US$ 543 bi, para 2016. O que se espera é que, em novas edições desses indicadores, o valor informado às autoridades internacionais seja o total indicado na quarta linha da Tabela 1, de US$ 684 bi.

A novidade no cômputo da dívida externa, que resultou diretamente da última revisão do Manual (BPM6), é que ela passou a incluir o valor dos títulos de Renda Fixa, emitidos em Real, na posse de não residentes[1]. Estes valores constavam anteriormente como “investimentos de risco” e eram louvados por aliviar a pressão sobre a dívida externa (a qual agora passou a integrar) e sobre o déficit orçamentário. Como qualquer investimento externo, eles já constavam do Passivo na contabilidade da pouco conhecida Posição Internacional de Investimentos – PII que registra os valores acumulados de dívidas e investimentos externos.

O Banco Central argumentou, em suas notas explicativas sobre as mudanças introduzidas pela BPM6, que a inclusão deste tipo de “investimento” na dívida externa era apenas uma mudança contábil, que não afetava o valor que já estava registrado no Passivo da PII. Acontece que poucos tomam conhecimento desse total de Passivo da PII e o dívida externa é um parâmetro bastante usado para avaliar a saúde financeira de um país.

Computar esse Passivo da PII é, a nosso ver, um ponto positivo na Metodologia introduzida pelo FMI. Inclusive, o Manual de BP é agora o “Manual do Balanço de Pagamentos e da Posição Internacional do Investimento”. A estimativa da PII contabiliza, no Passivo Nacional, os investimentos diretos externos + os empréstimos externos. Isto se justifica porque ambos geram obrigações que implicam remessas: No caso de empréstimos, de juros e, no caso de investimentos, de lucros e dividendos. A compra de títulos de Renda Fixa é iniludivelmente, um tipo de empréstimo cujos rendimentos são proporcionados por juros.

Esses “então investimentos” são, em grande parte, lastreados em títulos do Tesouro Nacional. Sua inclusão na dívida externa tem o mérito de explicitar a preocupação que deve existir sobre esse montante. Afinal, estes rendimentos terão que ser cobertos pelo próprio Tesouro Nacional e, pelo menos em parte, a partir do superávit fiscal a ser gerado com a arrecadação de taxas e impostos.

Argumentava-se a favor desses “investimentos” que eles eram cotados em reais e não sujeitos ao risco cambial. Na prática, para manter a atratividade desses títulos é necessário pagar juros reais que superam em muito os internacionais. Uma oscilação cambial provocaria a necessidade de frear a evasão de “investidores”, com risco de fuga brusca de recursos aplicados, no chamado “efeito manada”. Isto torna necessário, muitas vezes, aumentar ainda mais a taxa interna de juros para segurar esses recursos. Na atual circunstância, de câmbio abaixo da média histórica (consideradas as inflações), existe o risco real de o juro interno ser chamado a cobrir um aumento da cotação do dólar[2]. Ou seja, o risco cambial é de outra natureza, mas existe.

A incorporação de 127 milhões de dólares à dívida externa aumentou, em cerca de 40%, seu valor original e repercute diretamente nos índices usados externamente para o controle da dívida externa do Brasil. Esse valor representa um aumento de 7 pontos percentuais no índice Dívida Externa/PIB e de 60 pontos percentuais no índice Dívida Externa/Exportações, ambos constantes do acompanhamento realizado pela citada base de dados do Banco Mundial e indicados na Tabela 1.

Outra inquietude é a de que outras transferências do Passivo da PII para a Dívida Externa possam acontecer no futuro. O “Passivo Externo Bruto” já atingiu (4) US$ 1580 bi, ou 88% do valor do PIB e 750% do valor das exportações previstas para 2017, de 210 bilhões de dólares. De baixo deste “tapete”, podem surgir ainda novas parcelas a serem incorporadas à dívida externa. O próprio FMI já recomendou a monitoração de outros títulos negociados, além dos de renda fixa. Esses títulos são mais difíceis de quantificar em dólares, mas representam também um compromisso com não residentes e, portanto, possíveis de ser incorporados à dívida externa.

3.   O Fim do “Fim da Dívida Externa”?

Como pode ser visto na Figura 1, as incorporações à dívida externa bruta acabaram por desfazer o mito do “fim da dívida externa” (líquida) já que as reservas internacionais não são mais suficientes para cobrir o total da dívida externa bruta  como ainda fazem crer os novos números do BC divulgados periodicamente na Nota para a Imprensa.

Figura 1: As Reservas não são mais suficientes para cobrir a Dívida Externa, quando incorporadas as parcelas recomendadas pelo FMI(*)

Praticamente, estamos lidando com dois valores da dívida externa líquida: no valor tradicional, usado para fins internos, ela desapareceu; se considerado o valor completo, incluindo parcelas indicadas pelo FMI, ela é da ordem de 300 bilhões de dólares.

4.   Evolução do “Lado Oculto da Dívida Externa”

A Evolução dos componentes da dívida externa pode ser acompanhada na Figura 2 que mostra os dados trimestrais na nova metodologia (BPM6). Os dados a partir de 2001 foram reagrupados pelo BC (2) usando a nova metodologia e são mostrados na Figura 2.

Figura 2: Evolução dos valores da dívida externa bruta, os valores da parte superior do gráfico (vermelho e verde) correspondem as “parcelas FMI” da dívida externa.

Também está indicada na Figura 2, a evolução das Reservas Internacionais que podem ser comparadas com os valores da Dívida Externa Bruta, incluindo ou não as parcelas introduzidas pela metodologia FMI. O ano de 2006 marca um mínimo no valor do total da dívida e também o início da mudança de sua composição com o crescimento das “parcelas FMI” da dívida.

Na Tabela 2, podem-se acompanhar os valores, em meses escolhidos (geralmente junho), das parcelas da Dívida Externa Bruta, do valor das Reservas e dos valores da Dívida Externa Líquida nos dois conceitos.

Tabela 2: Componentes das Dívida Externa Bruta e Líquida
em US$ bi

Mês

Dívida Externa Bruta (valor tradicional)

[A]

Operações Intercom-panhia

[B]

Títulos de Renda Fixa com não Residentes

[D]

Dívida Externa Bruta Total

[E] = [A + B+C]

Reservas Interna-cionais

[F]

Dívida Líquida 1

[A-F]

Dívida Líquida 2

[D-F]

 dez/01 210162 22836174192
 jun/02 219171 23742177195
 jun/03 219182 24048171192
 jun/04 206192 22650156177
 jun/05 191205 21660131156
 jun/06 1572115 1926394130
 jun/07 1913935 26514744118
 jun/08 2065735 297201596
 jun/09 1997135 305201– 2104
 jun/10 2298170 380253– 24127
 jun/11 292105113 510336– 44174
 jun/12 316115106 536374– 58163
 jun/13 325159118 601369– 44232
 jun/14 339193170 702374– 34329
 jun/15 349210155 714369– 19346
 jun/16 336218141 695364– 28331
 jun/17 315230123 668377– 62291

Na dívida líquida 1 não estão incluídas as parcelas do FMI e na dívida líquida 2 sim. Pode-se ver na Figura 2 e Tabela 2 que, a partir de 2009, o valor das reservas (US$ 201 bi) ultrapassou o valor tradicional da dívida externa bruta (US$ 199 bi). As reservas nunca ultrapassaram o valor da dívida externa bruta, incluídos os itens FMI. Consequentemente, a dívida líquida 1 ficou negativa, mas a dívida líquida 2 permaneceu positiva. A partir de 2014, os valores da “parte oculta da dívida” (193+170=363) superam o valor tradicional da dívida externa (339) em bilhões de dólares. Isto é repetido nos anos seguintes.

A Dívida Externa e seus indicadores são utilizados como instrumentos para medir a confiabilidade dos países. A mudança desses índices não é uma questão menor e tem um custo efetivo para o País. Como a dívida líquida pode ser inexistente ou 140% das exportações totais anuais o contraste entre as duas situações é gritante. Obviamente, os números considerados externamente serão os do conceito do FMI e o argumento de que a dívida externa acabou só tem utilidade para fins internos.

A Dívida Externa foi uma maneira encontrada pela comunidade financeira internacional de onerar o país como um todo relativamente à ação se todos seus agentes econômicos. A mudança introduzida no cômputo da dívida externa pela BPM6 (5) vai nesse sentido.

A discussão sobre a validade de se considerar os novos fatores como integrantes da dívida é importante, embora externamente ineficaz. Sobretudo na computação das operações intercompanhia, parece haver uma incoerência interna com a própria metodologia do FMI. Com efeito, a abordagem teórica do FMI baseia-se na extensão do “Território Econômico” de outros países sobre o território dos que hospedam investimentos de “não residentes”.

Esta noção faz que a produção no interior de um país seja computada como do país de onde provém o capital dos “não residentes” como foi abordado aqui anteriormente (6). Se a produção não é mais do país “hospedeiro”, parece evidente que ele não seja responsável por uma dívida que não corresponde mais a seu “território econômico” na concepção da Metodologia do FMI.

Notar também que os reinvestimentos proveem da própria atividade econômica no país que passou, a partir da revisão metodológica, a ser considerado como recurso estrangeiro,  que alimenta o déficit nas contas correntes e a dívida externa. Na contabilidade anterior isso não acontecia. Na presente concepção, a semente da dívida se multiplica no próprio país hospedeiro e todo o valor agregado internamente. Com isso, fica eliminada a possibilidade de pagar a dívida a partir do valor gerado por esses investimentos. A isto se soma o inconveniente, já mencionado, da falta de mecanismos efetivos do governo do país hospedeiro poder controlar esses reinvestimentos. Como os reinvestimentos não passam por moeda estrangeira computá-los no déficit das contas correntes (e na dívida) cria um problema contábil quando se quer apurar a necessidade de financiamento externo do País.

5.   Conclusão

A dupla face da dívida externa, integra-se talvez na política de não chamar a atenção para as profundas mudanças  no cálculo do Balanço de Pagamentos. Essa dupla apresentação da Dívida Externa não parece útil para consolidar o conceito do Brasil na chamada Comunidade Internacional. O valor tradicional, ainda divulgado para uso interno pelo BC, só parece servir para manter a ilusão do fim da dívida externa.

Bibliografia

  1. Banco Central do Brasil. Setor Externo: Nota para a Imprensa. Banco Central do Brasil. [Online] 26 de outubro de 2017. https://www.bcb.gov.br/htms/notecon1-p.asp.
  2. —. Séries Históricas da Dívida Externa Bruta e da Dívida Externa de Curto Prazo por Vencimento Residual. Setor Externo BCB. [Online] 2017. https://www.bcb.gov.br/htms/Infecon/seriehistdivextbru.asp.
  3. World Bank. World Development Indicators – WDI. World Bank Data. [Online] 15 de setembro de 2017. https://data.worldbank.org/data-catalog/world-development-indicators.
  4. Banco Central do Brasil . Nota Imprensa 201710sep. [Online] 10 de setembro de 2017. https://www.bcb.gov.br/ftp/NotaEcon/NI201710sep.zip.
  5. Banco Central do Brasil. Série histórica do Balanço de Pagamentos – 6ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6). Banco Central do Brasil BPM6. [Online] outubro de 2017. https://www.bcb.gov.br/ftp/notaecon/balpagt.zip.
  6. Mudanças no Balanço de Pagamentos. Feu Alvim, Carlos, Starling, Andreza e Mafra, Olga. julho a setembro de 2017, Economia e Energia E&E, Vol. 96, pp. 5-19.

[1] Para simplificar a apuração, este valor só é computado quando o montante detido por não residentes ultrapassa 10% do valor de um fundo de investimento existente.

[2] Naturalmente qualquer aumento da taxa de juros seria, como de hábito, justificado como para conter a inflação.

Mudanças no Balanço de Pagamentos


Economia e Energia – E&E Nº 96, julho a setembro  2017
ISSN 1518-2932

Artigo:

MUDANÇAS NO BALANÇO DE PAGAMENTOS

Carlos Feu Alvim, Andreza Starling e Olga Mafra

 Resumo

O Brasil adota no seu Balanço de Pagamentos a metodologia estabelecida pelo FMI, definida através de manuais por ele publicados. Analisam-se as mudanças introduzidas pela sexta revisão BPM6 e comparam-se os resultados com os da versão anterior. Existem impactos importantes com o aprofundamento do conceito de que o comércio internacional se dá não entre os países, mas entre seus residentes. Bens e serviços produzidos pelo capital externo, inclusive bens naturais, são contabilizados de acordo com a nacionalidade do capital e não a partir das fronteiras internacionais. O impacto das mudanças ainda é mais significativo nas Transações Correntes e na Dívida Externa.

Palavras Chave

Balanço de pagamentos, Brasil, dívida externa, posição internacional de investimentos, BPM6, FMI, transações correntes, território econômico.

1.   As Mudanças no Manual do FMI

O Balanço de Pagamentos do BCB adota metodologia estabelecida pelo Fundo Monetário Internacional – FMI que é definida através de manuais publicados por essa instituição.

A primeira edição do Manual de Balanço de Pagamentos foi publicada em 1948 com o objetivo de orientar a padronização dos dados de diversas economias reportados ao FMI. Desde então, foram publicadas mais cinco atualizações do manual, “sempre com a finalidade de aperfeiçoar esta metodologia e retratar os últimos avanços nas áreas econômica e financeira”.

A partir da quinta edição (1993), foi incluída também a Posição Internacional de Investimentos – PII. Este conceito é muito importante como medida da vulnerabilidade dos países já que todas as obrigações e haveres são aí contabilizados. Um investimento externo, seja feito por intermédio de empréstimo, seja por investimento estrangeiro direto, é contabilizado negativamente, pois representa uma obrigação do país que recebe investimentos ou empréstimos. A PII representa uma visão mais completa do que pode ser chamado Passivo Externo Líquido[1].

A Sexta Edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimentos (BPM6), publicada em 2009, é a mais recente e estabelece a metodologia a ser utilizada na realização de cálculos e estatísticas das transações de um país, de modo a garantir uniformidade e comparabilidade entre as diferentes economias do mundo.

Em 2015, o Banco Central do Brasil – BCB atualizou a metodologia de cálculo do Balanço de Pagamentos (BP) e da Posição Internacional de Investimentos (PII) em conformidade com o BPM6. Os dados, entre 2010 a 2015, foram reconstruídos e publicados pelo BCB na nova metodologia. As séries completas, de 1995 a 2016[2], já estão disponíveis, mas as comparações mais relevantes se concentram no período estudado.

Dentre os benefícios desta atualização, foram apontados pelo BCB o aperfeiçoamento das estatísticas e o alinhamento com os dados do Sistema de Contas Nacionais 2008 (System of National Accounts, 2008 SNA) [Ref. 2], que é a nova metodologia adotada para contas nacionais pelo IBGE a partir de 2015.

2.    Repercussão das Mudanças no Balanço de Pagamentos

A maior consequência das modificações introduzidas no Balanço de Pagamentos é sobre as Transações Correntes. Estas modificações são apresentadas resumidamente no Anexo 1.

Na Tabela 1, estão indicados os principais itens relativos às Transações Correntes no período 2000 a 2016, conforme constam no Balanço de Pagamentos na estrutura nova. Chama atenção a expressiva redução do déficit nas Transações Correntes nos últimos anos que é um sinal positivo para vencer as dificuldades econômicas atuais. Esta tendência certamente contribuiu para que as mudanças realizadas, apesar do seu impacto negativo, não chamassem muito a atenção.

A Tabela 2 mostra os valores antigos (BPM5). Notar que o item “Rendas” corresponde ao atual “Renda Primária” e o item “Transferências Unilaterais Correntes” corresponde ao item “Renda Secundária” na classificação atual.

Nas Tabelas 3 e 4 comparam-se os valores pelas duas metodologias:

Tabela 1: Principais componentes das Transações Correntes (BPM6)
em milhões de dólares – Dados [Ref. 5]

 2010201120122013201420152016
Transações correntes-75.824-77.032-74.218-74.839-104.181-59.434-25.530
  Balança comercial18.49127.62517.420 389-6.62917.67045.037
      Exportações201.324255.506242.283241.577224.098190.092184.453
      Importações182.833227.881224.864241.189230.727172.422139.416
  Serviços-30.156-37.166-40.168-46.372-48.107-36.918-30.447
  Renda primária-67.055-70.475-54.308-32.538-52.170-42.910-41.080
  Renda secundária2.8962.9842.8383.6832.7252.7242.960

Tabela 2: Principais componentes das Transações Correntes (BPM5)
em milhões de dólares – Dados [Ref. 6]

 20102011201220132014
Transações correntes (saldo)-47.273-52.473-54.249-81.227-91.288
  Balança comercial (saldo)20.14729.79319.3952.286-3.959
    Exportação de bens (fob)201.915256.040242.578242.034225.101
    Importação de bens (fob)181.768226.247223.183239.748229.060
  Serviços (líquido)-30.835-37.932-41.042-47.101-48.928
  Rendas (líquido)-39.486-47.319-35.448-39.778-40.323
  Transferências unilaterais
correntes (líquido)
2.9022.9842.8463.3661.922

Pode-se ver na comparação das Tabelas 1 e 2 que, de modo geral, as exportações ficam menores e as importações maiores no novo critério. As duas alterações têm efeito negativo na Balança Comercial. Já, o saldo de serviços aumentou em cerca de 2% e a renda secundária foi praticamente igual nos primeiros anos e mais afetada em 2014. A maior diferença, entre as duas formas de apuração, vem da Renda Primária, que ficou, com a nova metodologia, expressivamente mais negativa, dada à maneira de se rotular os capitais. A Tabela 3 quantifica a diferença entre as duas metodologias e mostra, na última coluna, os valores acumulados.

Tabela 3: Comparação de dados das Transações Correntes
(BPM6 – BPM5) em milhões de dólares – Dados

 201020112012201320142010/14
Transações Correntes-28.551-24.559-19.9696.388-12.893-79.584
  Balança comercial-1.656-2.168-1.975-1.897-2.670-10.366
   Exportações de bens-591-534-295-457-1.003-2.880
   Importações de bens1.0651.6341.6811.4411.6677.488
  Serviços6797668747298213.869
  Rendas-27.575-23.156-18.8687.557-11.044-73.086
   Renda primária-27.569-23.156-18.8607.240-11.847-74.192
   Renda secundária-60-83178031.106

Na diferença observada nas Transações Correntes em 2014
(-12,8 US$ bilhões), a maior contribuição vem de itens que foram assinalados, nas planilhas do BCB, como “hiato financeiro” e que estão vinculados à Renda Primária detalhados na Tabela 4.

Tabela 4: Maiores Contribuições à Variação da Renda Primária

Em bilhões de dólares em 2014 – Dados [Ref. 5]

Discriminação 2014
Hiato Financeiro –  9,3
   Juros de títulos de renda fixa negociados no país (despesas) –  7,6
   Juros de remuneração de reservas (receitas) 3,0
   Lucros reinvestidos (receitas) 6,0
   Lucros reinvestidos (despesas) –  10,7

Dentre estes itens, destacam-se as modificações em juros e dividendos, cuja alteração nos valores, decorre da mudança de critérios para considerar o que é uma movimentação de capital brasileiro e externo, principalmente juros de renda fixa negociados no país e lucros reinvestidos. Os valores de receita mencionados referem-se a transações realizadas no Brasil em Reais cuja posse é de não residentes.

A evolução comparada dos valores das Transações Correntes é mostrada na Figura 1. Note-se que os valores de 2014 estão próximos nas duas metodologias. Os valores dos primeiros anos são, ao contrário, os que apresentam maiores discrepâncias.

Figura 1: Transações Correntes (comparação BPM5 e BPM6)

Desse modo, somando-se os valores da primeira linha da Tabela 3, pode-se ver que a mudança da Metodologia (BPM5 para BPM6) acrescentou, nos últimos cinco anos, cerca de 80 bilhões de dólares no déficit das transações correntes brasileiras.

3.        Mudança no Conceito de Comércio Exterior Introduzida no Balanço de Pagamentos pela Metodologia FMI

As definições a respeito do Balanço de Pagamentos vêm mudando ao longo do tempo. O conceito adotado pelo Banco Central do Brasil pode, inclusive, divergir da legislação vigente no Brasil já que obedece a uma normalização recomendada pelo FMI e que acaba funcionando como padrão internacional.

Na definição do “Business Dictionary [Ref 7]     http://www.businessdictionary.com/definition/international-trade.html

o comércio internacional é a troca de bens e serviços através de fronteiras internacionais.

The exchange of goods or services along international borders. This type of trade allows for a greater competition and more competitive pricing in the market. The competition results in more affordable products for the consumer. The exchange of goods also affects the economy of the world as dictated by supply and demand, making goods and services obtainable which may not otherwise be available to consumers globally”.

Esta definição corresponde ao conceito consagrado de comércio internacional vigente.

No artigo, The Meaning and Definition of Foreign Trade or International Trade de Smriti Chand [Ref. 8] aparecem três posições autorais:

According to Wasserman and Haltman, “International trade consists of transaction between residents of different countries”.

According to Anatol Marad, “International trade is a trade between nations”.

According to Eugeworth, “International trade means trade between nations”.

O FMI adota, em sua normalização, o primeiro conceito. Já o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC adota, em suas estatísticas, o conceito territorial de comércio entre nações.

A Nota Metodológica № 2 [Ref. 9]– Transações correntes do BCB de abril de 2015 aborda o tema com clareza e aponta (com sutileza) a divergência entre os conceitos do BP e os conceitos adotados pelo manual de Estatística do Comércio Internacional de Mercadorias (International Merchandise Trade Statistics – IMTS) editado pela Organização das Nações Unidas (ONU) [Ref 1].

O BMP6 menciona que o IMTS é o documento básico para as estatísticas do Balanço de Pagamentos, mas são necessários ajustes para os critérios que divergem das instruções sobre o Balanço de Pagamentos (grifo nosso).

No original: Adjustments to source data may be needed to account for coverage, timing, valuation, and classification that do not meet balance of payments guidelines.

A NM 2 do BC [Ref. 9] diz textualmente (inclusive grifos):

“Enquanto o parágrafo 14 do IMTS preconiza a cobertura dos bens “que adicionam ou subtraem do estoque de recursos materiais de um país, entrando (importações) ou saindo (exportações) de seu território econômico”, o BPM6, no parágrafo 10.13, “define exportação e importação a partir da mudança de propriedade econômica, entre residente e não residente:

“10.13 General merchandise on a balance of payments basis covers goods whose economic ownership is changed between a resident and a nonresident (…)” (grifado).

Embora a definição do BPM6 não constitua inovação significativa em relação ao BPM5, destaque-se o maior rigor com que o novo manual recomenda a aplicação do conceito de BP para o comércio externo de bens”.

Como resultado dessas instruções, o BCB deixou de considerar como dado exclusivo do Comércio Exterior as estatísticas do MDIC. A aceitação de que o Comércio Internacional não leve mais em consideração as transferências entre fronteiras, mas entre residentes tem importantes implicações sobre o critério de vulnerabilidade externa dos países. Tem também implicações legais e sobre a taxação do comércio que ultrapassam em muito a mera contabilidade externa. Existem, inclusive, implicações sobre o próprio comércio de energia.

Entre as mudanças introduzidas no BMP6, a NM 2 do BCB destaca as seguintes modificações que foram incorporadas no BP brasileiro e que afetam diretamente as Transações Correntes:

    • Importações de energia elétrica sem cobertura cambial,
    • Exportações fictas,
    • Importações fictas,
    • Bens em triangulação (merchanting).

Exportações e Importações fictas são exportações e importações fora das fronteiras dos países. É o caso, por exemplo, do abastecimento de aeronaves brasileiras fora do País, computado como importação ficta. No caso de equipamentos trazidos para o País que não mudam de proprietário, estes não são mais considerados importações; igualmente (como já previsto no REPETRO) o fornecimento de equipamentos nacionais (de residentes) para a uma companhia brasileira (principalmente Petrobras) para exploração de petróleo em águas nacionais é considerado como exportação, livrando-os da taxação local. Esta é uma maneira de compensar as empresas nacionais produtoras de equipamento e as empresas nacionais dessa distorção que favoreceria às companhias estrangeiras.

Vale a pena se deter, no caso de um dos temas principais desta revista (energia), sobre o novo conceito aplicado à produção de energia elétrica por um não residente no País. A energia elétrica produzida por um não residente, com esse conceito passa a ser considerada uma importação. Lembrar, no entanto, que as empresas internacionais estabelecidas como empresas no país são consideradas residentes.

Entre as hipóteses consideradas para a produção de energia elétrica no Brasil, está a participação de empresas estrangeiras na construção e exploração da geração elétrica. Se essas empresas adotarem sua personalidade jurídica internacional, a energia elétrica consumida no Brasil seria considerada energia importada. Mesmo as transações inteiramente feitas em moeda local, passam a ser consideradas importações. É interessante notar, como se pode observar na transcrição abaixo, que gás e água estão incluídos no mesmo conceito.

A redação do item específico sobre energia elétrica é mostrada a seguir:

“Importações de energia elétrica sem cobertura cambial: as importações do BP contemplarão todas as aquisições de energia elétrica junto a não residentes, incluindo os casos em que não há cobertura cambial ou efetiva entrega de recursos financeiros, parcial ou integralmente. O BPM6 explicitamente define energia elétrica como bem, recomendando sua inclusão nas contas de exportação e importação, conforme o parágrafo 10.7*, item b:

“10.17 Because there is a change of ownership of goods between a resident and a nonresident, the following cases are included in the balance of payments definition of general merchandise:

    • (a) (…)
    • (b) Electricity, gas, and water. However, charges invoiced separately for the transmission, transport, or distribution of these products are included in services under transport and other business services — see paragraphs 10.74 and
      10.159. (…)”
      (*) Da Nota Metodológica № 2 do BC[Ref. 9].

Parece evidente também que o petróleo produzido por empresas internacionais em território nacional, se consumidos no Brasil, será contabilizado como petróleo importado. Igualmente, o remetido para o país de origem da empresa não é considerado como exportação e se remetido para um terceiro país passa a ser considerado como exportação do país proprietário da empresa. Ou seja, energia hidráulica, gás, petróleo e a própria água “produzida” no Brasil por não residentes são consideradas estrangeiras para fins de exportação e importação.

4.        Posição Internacional de Investimentos – PII

O FMI introduziu na apuração do Balanço de Pagamentos (BP) que é uma medida de fluxo do País com o Exterior, o conceito de Posição Internacional de Investimentos (PII) que é uma medida de estoque dos valores transacionados.

Apurar o estoque de investimentos, ainda produtivo, não é tarefa fácil porque os bens de capital deterioram seu valor ao longo do tempo. Em vários artigos deste periódico em que foi abordado o tema produtividade do capital, a maior dificuldade foi determinar o estoque de capital. Hoje, o IPEA (ipeadata.gov.br) publica o valor estimado, considerada a depreciação, que corresponde ao estoque da Formação Bruta de Capital Fixo – FBCF estimado anualmente pelas Contas Nacionais (fluxo).

A partir de 1993, o FMI acrescentou no título do seu “Manual de Balanço de Pagamentos” (que apura fluxos) “e da Posição Internacional de Investimentos” (que apura os estoques). Os valores publicados são expressos em moeda americana e isso implica passar por uma taxa de câmbio e, para alguns deles, também por cotação de mercado, como é o caso das ações negociadas em bolsa. Isto dá volatilidade aos valores publicados ao logo do tempo. A parte do câmbio pode ser contornada expressando os valores em função do PIB.

O Passivo na Posição Internacional de Investimentos estima, de uma forma mais realista, a dependência externa de capital já que inclui toda a Dívida Externa Bruta e o valor dos bens possuídos por não residentes. Em contrapartida, também é estimado o Ativo que inclui os valores possuídos no exterior pelo Governo e por residentes no País. Como ilustram bem inúmeros artigos sobre os escândalos nacionais, esta não é uma apuração fácil, já que ao menos uma parte dos bens no exterior de residentes brasileiros não é declarada. O Governo vem promovendo censos tanto de bens brasileiros no exterior como de estrangeiros no Brasil. A concessão de anistia para registro de ativos no exterior e o estabelecimento de punições para valores não declarados fazem parte da estratégia de melhor estimar os valores e reforçar a arrecadação. Como exemplo de anistia pode-se mencionar o RERCT (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária) onde recursos no exterior puderam ser regularizados pelo pagamento de 30% de seu valor em impostos (mediante declaração de que não se tratava de recursos ilícitos).

Mesmo sujeito às imprecisões, a medida apurada pela metodologia do FMI é muito útil e certamente os países, assim como eram cobrados pelo excessivo valor de sua Dívida Externa serão cobrados por seu Passivo. Mesmo porque, não existe barreira prática no que é considerado Passivo da PII e Dívida Externa, como é mostrado a seguir.

A avaliação da Posição Internacional de Investimentos é publicada trimestralmente pelo BCB e sua evolução é mostrada na Figura 2. O valor do Passivo chegou a um e meio trilhão de dólares e estacionou e isso parece ser um limite prático de comprometimento.

Pode-se observar na Figura 2 oscilações importantes no Passivo que provêm principalmente das variações do câmbio, mas que também inclui as da bolsa de valores. Já os valores do Ativo, expressos em dólares, não apresentam esse tipo de variação. Uma aproximação conveniente é expressar os valores em função do PIB como é mostrado na Figura 3. O Passivo Nacional já se aproxima de 80% do PIB o que expressa uma perigosa relação de dependência que pode ainda ser agravada com a venda de ativos para não residentes. Um ponto importante a considerar é que o Ativo da PII só parcialmente representa uma compensação ao Passivo, uma vez que nem todos os itens do Ativo são garantias alcançáveis pelo credor externo como o são as Reservas.

No Anexo 1, chama-se a atenção para as mudanças introduzidas na apuração da Dívida Externa. A Tabela 5 mostra os valores que foram incorporados com a mudança de conceitos aplicados à Dívida Externa. Os valores incluídos chegam a mais que dobrar o valor da dívida que chegou a 675 US$ bilhoes em março de 2017(valores preliminares). Só na última revisão, 127 US$ bilhões foram acrescentados à dívida. As Reservas em março de 2017 de 370 US$ bilhões de dólares não cobrem mais a dívida externa bruta no conceito FMI.

Figura 2: Posição Internacional de Investimentos, evolução trimestral.
Figura 3: Valores anuais da Posição Internacional de Investimentos relativa ao PIB.

Tabela 5: Dívida Externa Bruta e seus Acréscimos
em milhões de dólares

 mar/17% Valor Original
Dívida externa bruta (A) 314 216100
Operações intercompanhia (B) 233 25874
Dívida externa bruta, inclusive B: C=(A+B) 547 474174
Títulos de Renda Fixa detidos por não residentes (D) 127 14740
Dívida externa bruta, inclusive B e C: (E=C+D)_ 674 621215

5.        Conclusão

Considera-se o tema aqui abordado deveria merecer maior atenção e debate, já que vivemos uma fase de transição onde os destinos da nacionalidade estão sendo definidos. O Brasil tem se empenhado até agora na preservação de sua unidade territorial e marítima principalmente as relacionadas com as regiões identificadas como mais ameaçadas quais sejam a Amazônia Legal e o Mar Brasileiro, também chamado de “Amazônia Azul”. O conceito de que a pátria do produto é a pátria do capital, definido por sua residência, introduz um “Cavalo de Troia” na economia nacional cujas consequências parecem estar passando despercebidas.

A contabilidade que adotamos, baseada em instruções normativas do FMI, reflete uma noção que corrobora uma visão, antes classificada como uma deformação nacionalista, que considera estrangeiro o produto no País gerido pelo capital externo. A extensão da lista dos produtos atingidos e a forma de contabilizá-los é feita gradativamente a partir de instruções normativas do FMI. Por exemplo, só na última revisão, gás, água e eletricidade foram explicitamente incluídos. As instruções do FMI esclarecem que mesmo que as transações sejam realizadas em moeda nacional a transferência de eletricidade aqui produzida para o consumidor brasileiro deve ser considerada como importação.

Assim como a fronteira geográfica, a fronteira da moeda já havia sido rompida para capitais e agora atinge mercadorias.

Por enquanto, o Balanço de Pagamentos do Brasil considera como produto nacional o de empresa com capital estrangeiro estabelecida no País. Esta alocação é, a rigor, incoerente com o princípio adotado no BPM6 e corre o risco de ser modificada por instrução do Fundo.

O conceito mais abrangente já foi plenamente aplicado ao capital investido e isso causou uma diferença de 70 US$ bilhões no déficit acumulado em cinco anos das transações correntes conforme avaliação do BCB. Como pode ser visto no Anexo 1, reinvestimentos de capital estrangeiro, provenientes, portanto, de recursos produzidos no território nacional, são considerados recursos externos. Por isso já tinham passado a integrar a dívida externa os empréstimos entre companhias.

Nessa Sexta Edição normativa do FMI que adotamos no Brasil, foram incluídos na Dívida Externa os “títulos de renda fixa negociados no mercado doméstico em mão de não residentes, denominados e liquidados em reais”. Ou seja, títulos nacionais comprados por não brasileiros, antes louvados como investimento externo de risco passaram a fazer parte da Dívida Externa. O impacto total desta medida ainda não está inteiramente avaliado porque outros títulos ainda não têm uma forma de cotação estabelecida e apenas deverão ter seus valores em Reais informados.

Não obstante os riscos e inconvenientes aqui apontados na nova contabilidade aplicada ao Balanço de Pagamentos, é necessário reconhecer nela o mérito de explicitar a relação de poder entre países sobre produtos e capitais, antes considerados nacionais. Há um progresso louvável na apuração do estoque de ativos e passivos. No entanto, deslocar valores do Passivo (antes considerados como investimentos) para a Dívida Externa significa incluí-los na responsabilidade do Governo. Este não exerce controle efetivo, por exemplo, sobre reinvestimentos e compra de títulos nacionais por não residentes. Uma nova e flexível fronteira foi estabelecida para os países, baseada na propriedade do capital, que substitui, na contabilidade nacional, as fronteiras físicas e monetárias. A Política Nacional terá que assimilar as consequências disso.

[1] O programa projetar_e, usado pela ECEN Consultoria, trabalhava com um conceito parecido que apurava o Passivo Externo Líquido pelo déficit acumulado das transações correntes. Passou a usar a PII que representa um progresso na contabilidade nacional e internacional já que ele avalia as obrigações assumidas pelo país e que servem para avaliar sua vulnerabilidade, já que empréstimos e investimentos implicam em um passivo que exige retornos aos investidores externos, seja no pagamento da amortização da dívida e juros, seja pela remessa de lucro e dividendos.

[2] Posteriormente, foram publicados os dados revistos de 1995 a 2016 que não modificaram substancialmente os dados aqui utilizados, o período completo está disponível em [Ref 5] , consultado em 07/08/17.

 [Ref 1] International Merchandise Trade Statistics: Concepts and Definitions 2010 (IMTS 2010)

[Ref.2] System of National Accounts 2008 – 2008 SNA

[Ref. 3] Balance of Payments and International Investment Position. Manual Sixth Edition (BPM6) FMI 2009

[Ref. 4] Apresentação – primeira publicação de dados sob o BPM6 – 22 de abril de 2015

[Ref. 5] Séries históricas – BPM6

[Ref. 6] Série histórica do Balanço de Pagamentos – 5ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM5)

[Ref. 7] Business Dictionary

[Ref. 8] The Meaning and Definition of Foreign Trade or International Trade Smriti Chand

[Ref. 9] Nota Metodológica nº 2 – Transações correntes – Adoção da 6ª Edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6) – Atualizada em 23.4.2015

[Ref 10] Perguntas frequentes (FAQs) sobre a conversão de BPM5 para BPM6

[Ref 11] Nota Metodológica nº 3 – Investimentos diretos e renda primária (lucros) – Adoção da 6ª Edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6) – Atualizada em 23.4.2015

[Ref 12] Apresentação – Grupo de Trabalho em Estatísticas de Investimentos Internacionais da OECD – The Brazilian Experience on Estimating Reinvested Earnings

Porque é Necessária uma Política Nuclear

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra

Para que um país alcance êxito, na área nuclear ou em qualquer atividade de importância estratégica necessita identificar objetivos de longo prazo e, em função deles, estabelecer uma Política de Estado. No setor nuclear, isto é naturalmente evidente porque os projetos nucleares forçosamente ultrapassam os períodos de um ou dois mandatos presidenciais, sendo ineficazes as políticas com horizonte de um mandato governamental.

Uma Política Nuclear precisa ter durabilidade e isto só é possível se ela for o reflexo da vontade nacional que demanda um consenso, também nacional e que exige uma aprovação ampla, mas não obrigatoriamente uma unanimidade.

Em 2013 a então Secretaria de Assuntos Estratégicos – SAE da Presidência da República realizou um trabalho, do qual fomos consultores que buscava estabelecer as bases do que seria uma Política Nuclear para o Brasil. A ideia parece ter tido origem nos bons resultados alcançados na Política e Estratégia de Defesa que a extinta SAE elaborou juntamente com o Ministério da Defesa.

O trabalho de preparação realizado consistiu em:

  • Reunir e estudar a legislação nacional e os tratados existentes;
  • Estudar as estruturas do setor nuclear dos sete países considerados como mais relevantes na área (China, EUA, Rússia, França, Reino Unido, Japão e Coreia do Sul) que representam, incluindo o Brasil cerca de 1/3 da população e superfície mundiais, um pouco mais da metade do PIB (tanto pelo câmbio nominal como pelo poder de compra) e cerca de 3/4 (75%) da capacidade instalada e da capacidade em construção no mundo de produção de eletricidade nuclear;
  • Retirar do exemplo desses países a expressão das Boas Práticas da Política Nuclear;
  • Localizar as vulnerabilidades e as potencialidades do Setor Nuclear no Brasil e identificar ações para prevenir as vulnerabilidades e aproveitar as oportunidades;
  • Identificar Consensos existentes e pontos sob os quais se poderiam estabelecer novos consensos.
  • Alcançar e expressar consensos parecia, na ocasião da elaboração do trabalho (2013/2014) não só necessário como também possível. Mesmo no clima pré-eleitoral em que ele foi finalizado. Na época, ficamos surpresos com os inúmeros pontos de consenso que o Setor Nuclear havia construído nas duas últimas décadas e que não existia nas décadas anteriores.
  • Entre esses pontos de consenso cabe destacar:
  • O uso da energia nuclear deve ser exclusivamente para fins pacíficos [Constituição de 1988];
  • O Brasil não dará novos passos de limitação de sua atividade nuclear enquanto não houver demonstração efetiva dos países armados no sentido do desarmamento [Política de Defesa];
  • O cumprimento do Tratado de Tlatelolco tanto pelos países da Região como pelos países que possuem armas nucleares é importante para a paz na região do Tratado;
  • O Brasil deve ampliar o uso de outras fontes em sua matriz energética de geração de eletricidade;
  • O Sistema Integrado precisa de complementação térmica na geração de base e para amenizar oscilações sazonais da hidro e enfrentar os déficits plurianuais de chuva;
  • A melhor térmica para gerar na base no longo prazo é a nuclear;
  • Energia Nuclear é estratégica;
  • O domínio do ciclo de combustível dá prestígio entre as nações;
  • É necessária a independência tecnológica na área de combustível nuclear e capacidade industrial para atender à necessidade estratégica;
  • O uso da propulsão nuclear é uma necessidade estratégica;
  • Submarino com propulsão nuclear não é arma de destruição em massa e não está proscrito;
  • Submarino com propulsão nuclear é importante para defesa do País;
  • Confiança na própria tecnologia sem negar a tecnologia já desenvolvida é importante;
  • Necessidade de uma capacidade de defesa de acordo com o porte do País;
  • A linha de reatores a ser adotada pelo País é de um PWR avançado;
  • O combustível nuclear no médio prazo é o urânio enriquecido;
  • A tecnologia de enriquecimento é a ultracentrifugação (usando o processo aqui desenvolvido);
  • A separação das partes licenciadora e fiscalizadora da CNEN das suas outras atividades é necessária;
  • Deve haver uma sinergia entre os programas nucleares civil e militar;
  • O programa nuclear da Marinha do Brasil trouxe grandes avanços tecnológicos para o País;
  • A comunidade internacional reconhece as intenções pacíficas da atividade nuclear no Brasil e não o identifica como promotor de proliferação para outros países;
  • A NUCLEP é importante para a indústria nacional e para a construção dos submarinos.

Alguns pontos foram identificados como de “consensos em formação” e poderiam constar da Política sendo que alguns deles foram debatidos em 2008 em reuniões do Conselho de Desenvolvimento do Programa Nuclear, formado pelos ministros de importância na área. Nesse consenso em formação, os seguintes pontos se destacavam:

  • Maior participação da Iniciativa Privada nas atividades nucleares sobretudo nas etapas menos críticas do ciclo nuclear como produção e purificação de urânio, uso de radioisótopos e construção de reatores;
  • Possibilidade de exportação de combustíveis nucleares desde que garantidas as necessidades nacionais ao longo da vida dos reatores existentes e planejados;
  • Necessidade de se equacionar de imediato os problemas de armazenamento de combustíveis irradiados no próprio sítio e da construção de depósito para colocação de resíduos de baixa e média atividade em local próprio;
  • Encontrar uma solução de depósito intermediário de longo prazo (horizonte de 500 anos) dos resíduos de alta atividade do ciclo nuclear com possibilidades de acesso futuro;
  • Atingir autossuficiência na produção de combustíveis para os reatores de produção de energia e pesquisa;
  • Atingir a autossuficiência em todas as fases de produção do combustível nuclear (inclusive conversão);
  • Incentivar a pesquisa mineral;
  • Ampliar o uso no Brasil de técnicas e produtos de origem nuclear nas áreas de Medicina, Indústria, Agricultura e Meio Ambiente;
  • Alcançar autossuficiência na área de produção de fármacos e atender as necessidades na área de testes de materiais mediante a instalação de Reator Multipropósito que atenderá ainda as necessidades de pesquisa e desenvolvimento.

O trabalho que realizamos sobre a Política Nuclear se encerrou em meados de 2014. A ideia era apresentar os resultados ao novo Presidente já que a proposição de uma Política fica melhor no momento de força que se supõe existir no início de mandato. A extinção da SAE e os percalços do início do governo, fizeram que a iniciativa de se fazer uma proposta de Política Nuclear fosse adiada.

Neste reinício de governo e com a crise que atingiu o País e o Setor, existe uma urgência por decisões nessa e em outras áreas. Bom seria que elas fossem tomadas visando objetivos coerentes de uma política de longo prazo. Nesse momento, o consenso possivelmente se tornou mais difícil, mas também mais necessário.

 

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