Os que Querem Vender o Brasil

Palavras do Editor

O Brasil passa por um período de perigoso descuido com a Soberania Nacional. A venda de ativos nacionais tem sido apregoada cada vez mais como uma saída para a crise econômica, não faltando, inclusive, apologia da cessão da soberania sobre parte do nosso Território.

Proposta de Cessão Direta da Soberania de Parte do Território Nacional

A maioria dos países civilizados não tolera manifestações diretas sob a divisão de seu território. No entanto, a publicação na Folha de São Paulo (21/09/2017) do artigo de seu então colunista (quinzenal) Leandro Narloch sob o título “E se o Brasil vendesse a soberania de partes do seu território?” não provocou maiores reações. Depois de tentar convencer ao leitor de que estava falando sério,ele propôs:

“Com o excesso de liquidez no mundo, a venda da soberania renderia facilmente algumas vezes o valor da Petrobras (hoje em US$ 65 bilhões). Imagine a bolada que empresas e visionários pagariam para terem a chance de se instalar em um território sem governo ou impostos. Seria possível erguer um Hong Kong e duas Cingapuras usando apenas 0,05% do território brasileiro– em terras devolutas de Roraima, do Acre ou na fronteira com o Uruguai.”

Para concluir:

“A concorrência com paraísos fiscais vizinhos é, na verdade, uma vantagem. Obrigaria o governo brasileiro a ser mais eficiente se quiser evitar a fuga de dinheiro e de moradores. Talvez um território 1% menor seja o melhor caminho para um Brasil grande.”

Narloch é um jornalista polemizador, recentemente demitido da CNN por comentários considerados homofóbicos. No caso, o jornalista foi defendido, nas redes sociais, pelo Presidente Bolsonaro. Do outro lado do espectro em relação a  Bolsonaro[1], a mesma Folha, publicou recentemente (01/10/2020) o artigo do também polêmico Hélio Schwartisman [2] “Vender a Amazônia – Seria boa ideia os gringos comprarem-na”. Ele diz que a ideia seria difícil de ser aceita pelos colegas de farda do Presidente, mas deveria ser considerada no sentido de ”usar a imaginação e perscrutar o problema e tentar extrair ideias úteis”,  mas avança:

“Vamos supor que alguma nação rica, ou, melhor ainda, um consórcio internacional, ofereça uma enorme bolada pelo território. Vamos supor ainda que a população amazônida teria assegurada uma enxurrada de investimentos em programas de desenvolvimento sustentável, além de direito ao passaporte do país adquirente. Imaginemos, por fim, que o comprador se comprometeria a preservar integralmente a mata e a biodiversidade local. Haveria mecanismos para garantir o cumprimento dessa cláusula. Sob essas condições, por que não vender a Amazônia?”

O Projeto de Lei que Facilita a Compra por Estrangeiros de Terras no Brasil

No dia 15 de dezembro de 2020 o Senado aprovou, em sessão semipresencial, o Projeto de Lei[3] (PL 2.963/2019) [4]. que facilita a compra, a posse e o arrendamento de propriedades rurais no Brasil por pessoas físicas ou empresas estrangeiras. O PL do senador Irajá (PSD-TO), teve parecer favorável do relator, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), com emendas, e segue agora para votação na Câmara dos Deputados

O Artigo 8º do referido PL estabelece o limite da participação de estrangeiros:

Art. 8º A soma das áreas rurais pertencentes e arrendadas a pessoas estrangeiras não poderá ultrapassar 1/4 (um quarto) da superfície do Município onde se situem.
§ 1° Pessoas da mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias ou possuidoras, em cada Município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado neste artigo.
§ 2° Ficam excluídas das restrições deste artigo as aquisições de áreas rurais quando o adquirente for casado com pessoa brasileira sob o regime de comunhão de bens.

Como se vê, é um limite bastante frouxo, quando se sabe que somente são agricultáveis cerca 17,9 % do território nacional e a área efetivamente utilizada é de somente 7,3% do território. Ou seja, para a grande maioria dos municípios esse limite, estabelecido sobre a superfície total, deve superar a área agricultável. Além disso, o § 2 torna o limite de posse de terras por estrangeiro ainda mais flexível.

Nada impede, portanto, que estrangeiros, na prática, tornem-se proprietários do total da área agriculturável da maioria dos municípios brasileiros. Além disso, fica aberta com o PL a via para que descendentes de brasileiros que estabeleçam residência e nacionalidade externas venham herdar imensas áreas no Brasil. Isso é totalmente independente das restrições ainda estabelecidas pelo PL 2063/2019[5] . O artigo primeiro, § 1º do Projeto, determina que as restrições não se aplicam ao caso de sucessão legítima.

A discussão publicada no portal do Senado foi bastante esclarecedora. O líder do PT, Senador Rogério Carvalho (SE), apresentou pedido de retirada de pauta do projeto alegando que o texto autoriza a compra de até 25% dos territórios dos municípios, o que poria em risco a segurança alimentar e a produção de alimentos, além de causar o aumento no preço de terras no Brasil. Foi também argumentado (senador Jean Paul Prates, PT-RN) que o assunto não estaria maduro. Na avaliação do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), o projeto promove a internacionalização das terras brasileiras em larga escala, sobretudo das áreas localizadas na Amazônia.

O autor do Projeto, Senador Irajá (PSD-Tocantins) disse que havia consultado 74 dos 81 senadores e 68 eram favoráveis a votação do texto. O senador Otto Alencar (PSD-BA) destacou que chineses, ingleses e italianos já utilizam terras baianas para plantio de diversas culturas, como soja e café.

O pedido de remoção do projeto de pauta foi rejeitado e o Projeto de Lei aprovado com o voto contrário de apenas 8 senadores[6]. Entre eles, não constam os dos senadores que haviam pedido a retirada de pauta do PL ou assinalado o perigo de internacionalização das terras brasileiras.

Venda de Terras a Estrangeiros ameaça o Território Nacional

No livro Poder Econômico via Contabilidade[7] chamamos a atenção para a nova definição de Comércio Exterior. Na Nova Contabilidade, adotada pelo Balanço de Pagamentos e Contas Nacionais, as fronteiras dos países deixaram de ser determinantes para definir o comércio internacional. Ele passou a ser definido como o comércio feito entre residentes no País e os não residentes.

Esta noção não se aplica somente a pessoas. Ela também se aplica a “unidades de produção”. Se ela é controlada por pessoas que não residem no Brasil ela pode ser considerada “não residente” e o que ela produza dentro das fronteiras do Brasil deixa de ser produto brasileiro. Esta regra já passou a ser aplicada no Brasil, a partir de 2015.

A venda de terras a não residentes facilita que a produção agrícola, delas proveniente, seja também passível de ser considerada “não residente”, para sermos mais explícitos “não brasileira”. Se consumida no Brasil, ela pesará em nossas importações, se exportada não fará parte de nossas exportações. Isto só não acontece atualmente porque as instruções do FMI e do Sistema de Contas Nacionais – SCN, excluem deste conceito o produto agrícola, usando uma interpretação que, eludindo a lógica do sistema, considera que o dono de terras tem automaticamente interesse local e deve ser considerado residente do país hospedeiro do capital.

Para tratar do caso em que a propriedade é efetivamente de estrangeiros ou de “não residentes” as normas do SCN (SNA em inglês) estabelecem:

“Se o proprietário legal é realmente não residente, uma unidade artificial, chamada unidade residente nocional, é criada no Sistema de Contas Nacionais. A unidade residente “nocional” é registrada como proprietária do ativo, recebendo os proprietários aluguéis ou rendas, acumuladas em função do ativo. O proprietário legal possui o patrimônio da unidade residente nocional e, em consequência, recebe rendimentos da unidade residente nocional na forma de renda patrimonial paga no exterior”. SNA 2008 § 4.49

Ou seja, o Sistema cria uma unidade fictícia de produção para não aplicar, por hora, a regra geral de que uma unidade “não residente” tem o produto alocado ao país de seu controlador.

Para resolver este paradoxo ele indica uma solução esdrúxula onde uma empresa ou pessoa com propriedades agrícolas é representada por uma unidade fictícia “residente” para ser registrada como de interesse local. Essa empresa paga, no entanto, aluguel e rendas ao seu verdadeiro dono no exterior. Na nossa interpretação, essa artificialidade visa aplacar reações nacionais no país que o FMI designa como “hospedeiro” do investimento. Quando oportuno, a lógica do Sistema deverá ser restabelecida.

A artificialidade proposta pelo FMI, já tinha sido antecipada, no Brasil, pela emenda constitucional nº 6, que passou a conceder os privilégios de Empresa Brasileira na Constituição a qualquer empresa, mesmo de capital externo, desde que tenha sede registrada no País. O relator do projeto lembrou, inclusive, que o Projeto de Lei, estenderia essa emenda aos empreendimentos agrícolas.

Defesa da Soberania Nacional

Manter a integridade do Território Nacional é a primeira função das Forças Armadas[8] e objeto do juramento constitucional do Presidente da República123F[9]. Talvez considerando isso e, atento as suas origens, o Presidente Bolsonaro prometeu vetar o Projeto de Lei[10]:

“Vai para a Câmara, se a Câmara aprovar tem o veto meu. Aí o Congresso vai derrubar ou não o veto. Falta patriotismo para nós. Não podemos permitir que o Brasil seja comprado”.

A frase do Presidente, embora contenha o que poderia ser interpretado como uma “lavagem de mãos” prévia sobre a decisão do Congresso, deixa os congressistas em uma “saia justa” e joga neles toda a responsabilidade. De fato, devem assumir essa responsabilidade, já que são, pela Constituição (Art. 48, inciso V), responsáveis por legislar sobre os “limites do território nacional”. Se assumirem uma atitude de ignorar a gravidade da medida, isso será seguramente interpretado como defesa de seus interesses particulares, tendo em vista a expressiva participação de ruralistas na composição do Congresso[11]. A aprovação do projeto no Senado, no apagar das luzes de 2020 (em 15/12/2020), sem passar pelas comissões específicas, foi certamente açodada. A data era certamente propícia para que o assunto passasse despercebido. A mensagem do Presidente nas redes sociais, talvez ajude a não “deixar a boiada passar”, aproveitando as circunstâncias atuais. Mesmo reconhecendo que existem falhas na defesa dos interesses nacionais em outras atitudes desse Governo, essa é uma atitude muito positiva que deve ser aplaudida.

O assunto é da maior gravidade e deve ser objeto de análise dos organismos encarregados da Segurança Nacional. Com efeito, cabe ao Conselho de Defesa Nacional em relação ao Território Nacional “opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo” Art. 91, § 1º, III da Constituição Nacional. Seria também útil solicitar a Escola Superior de Guerra – ESG que examinasse o assunto, assim como entidades civis e militares ligadas à Defesa do Território Nacional. Cabe lembrar ainda que, pelas regras já vigentes do Balanço de Pagamentos, esse tipo de “investimento externo” é automaticamente registrado como dívida externa brasileira, comprometendo o futuro do País.

Como mostrado em nosso no livro Poder Econômico via Contabilidade o Brasil, pelos quase unanimemente louvados investimentos externos, remete ao exterior ou acrescenta à sua dívida externa 76 US$ bi anuais[12]. Como vimos, isso é mais de uma Petrobras por ano. São 60 US$ bi de juros e lucros e 16 US$ bi em aluguéis, a maioria de equipamentos estrangeiros aqui estacionados.

Só o que nos faltava é pagar aluguel sobre nosso território nacional!

Carlos Feu  Alvim

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[1] Autor do artigo “Por que torço para que Bolsonaro Morra” e, por isso, ameaçado pelo Governo com a Lei de Segurança Nacional (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/07/por-que-torco-para-que-bolsonaro-morra.shtml). A Lei de Segurança Nacional é a mesma que pune tanto lesar contra a integridade territorial como expor a perigo de lesão os chefes dos Poderes da União.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/10/vender-a-amazonia.shtml

[3] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/12/15/aprovado-projeto-que-regulamenta-a-aquisicao-de-terras-por-estrangeiros

[4] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8916441&ts=1608658798929&disposition=inline

[5] https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/100861?sequleg.br/noticias/materias/2020/12/15/aprovado-projeto-que-regulamenta-a-aquisicao-de-terras-por-estrangeirosencia=123

[6] O projeto recebeu o voto contrário dos senadores Eduardo Girão (Podemos-CE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Paulo Paim (PT-RS), Jorge Kajuru (Cidadania-GO) e Styvenson Valentim (Podemos-RN), além das senadoras Zenaide Maia (Pros-RN), Leila Barros (PSB-DF) e Rose de Freitas (Podemos-ES).

[7] https://www.amazon.com.br/dp/B08NY24VLR/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=poder+econ%C3%B4mico+via+contabilidade&qid=1605924876&s=digital-text&sr=1-1

[8] Assegurar a integridade do território nacional; defender os interesses e os recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros; proteger os cidadãos e os bens do país; garantir a soberania da nação. https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/estado-maior-conjunto-das-forcas-armadas/estado-maior-conjunto-das-forcas-armadas/forcas-armadas.

[9] Sustentar a união, integridade e a independência do Brasil.

[10] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/12/bolsonaro-se-junta-a-pt-em-oposicao-a-projeto-que-facilita-venda-de-terras-a-estrangeiros.shtml

[11] A Frente Parlamentar da Agropecuária reúne 257 deputados e senadores em 2020, os ruralistas têm interesse direto na medida que valoriza seu patrimônio. https://deolhonosruralistas.com.br/2019/03/22/nova-frente-parlamentar-da-agropecuaria-reune-257-deputados-e-senadores-com-25-psl-de-bolsonaro-so-fica-atras-de-pp-e-psd/

[12] Dados do Banco Central do Brasil para 2018

O Território Econômico Nacional


Economia e Energia – E&E   
Nº 101,  outubro a dezembro de 2018
ISSN 1518-2932

Artigo:

O TERRITÓRIO ECONÔMICO NACIONAL:
Impactos das normas internacionais de contabilidade

Carlos Feu Alvim (carlos.feu@ecen.com),
Olga Mafra (olga@ecen.com)
 Patrícia Sena (patricia.sena@analiticadobrasil.com.br)
Miriam A.S. Lepsch (maslepsch@id.uff.br)  e
Leonam Guimarães (leonam@eletronuclear.gov.br)

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar as consequências geopolíticas da implantação do conceito de território econômico, introduzido no Brasil através da adoção de normas internacionais de contabilidade para as Contas Nacionais e Balanço de Pagamentos. Foi adotada metodologia qualitativa que busca identificar as consequências da mudança do conceito de comércio exterior sobre a apuração de variáveis importantes da economia como PIB, balança comercial, saldo nas transações correntes e que acaba atingindo a própria definição de território nacional. Segundo conceito introduzido pelo Manual de Balanço de Pagamentos do Fundo Monetário Internacional (FMI), o território econômico nacional é uma extensão do conceito de território nacional. Assim, o PIB de um país não é mais o valor econômico adicionado aos produtos dentro de suas fronteiras, mas só sobre as unidades produtivas onde seus residentes exercem o domínio econômico. Este é um conceito poderoso através do qual o país receptor de capitais abre mão de parte de seu território produtivo. O artigo busca chamar a atenção sobre como alterações da contabilidade internacional, adotadas no Brasil sem filtro adequado jurídico e constitucional, podem atingir questões de Interesse Nacional. O objetivo deste trabalho foi chamar a atenção para os procedimentos da contabilidade nacional e externa que são de importância estratégica para a Nação Brasileira.

Palavras-chave:

Normas Internacionais de Contabilidade, Território Econômico Nacional, Balanço de Pagamentos, Segurança Nacional.

Abstract:

The objective of this article is to analyze the geopolitical consequences of the implementation of the concept of economic territory, introduced in Brazil through the adoption of international accounting standards for the National Accounts and Balance of Payments. It was adopted a qualitative methodology that seeks to identify the consequences of the change in the concept of foreign trade on the calculation of important variables of the economy such as GDP, trade balance, balance in current transactions and that ends up reaching the definition of national territory itself. According to a concept introduced by the International Monetary Fund (IMF) Balance of Payments Manual, the national economic territory is an extension of the concept of national territory. Thus, a country’s GDP is no longer the economic value added to the products within its borders, but only on the productive units where its residents exercise the economic domain. This is a powerful concept through which the host country gives up part of its productive territory. The article looks for drawing attention to how changes in international accounting, adopted in Brazil without adequate legal and constitutional filter, can reach National Interest issues. The objective of this paper was to draw attention to the national and foreign accounting procedures that are of strategic importance for the Brazilian Nation.

Keywords:

International Accounting Standards, National Economic Territory, Balance of Payments, National Security.

1.    Introdução

O Conceito tradicional da Contabilidade Nacional referia-se a contabilidade dentro das fronteiras físicas de um país, ou seja, no Território Nacional, dentro de seus limites físico-geográficos. A contabilidade externa se ocupava das trocas entre territórios, ou seja, através das fronteiras dos países.

O Território Nacional é basicamente o espaço sobre o qual o País exerce sua soberania, definido por suas fronteiras geográficas, acrescido do mar territorial e do espaço aéreo correspondente. Manter sua integridade é a primeira função das Forças Armadas[1] e objeto do juramento constitucional do Presidente da República[2].

O território econômico nacional é uma extensão desse conceito (IMF, 2009), introduzido pelo FMI[3], que inclui espaços, em áreas internacionais ou em outros países, onde seus residentes exercem seu poder econômico. A partir desse conceito, o PIB de um país não é mais o valor econômico adicionado aos produtos dentro de suas fronteiras, mas aquele produzido por seus residentes no seu território ou em qualquer parte do mundo. Este é um conceito poderoso através do qual o país receptor de capitais abre mão de parte de seu território produtivo.

Nesse contexto, em vista da relevância do tema para a sociedade, considerando discutir os potenciais impactos sobre os resultados nacionais em sua dimensão econômica, trazidos pela adoção de regras contábeis internacionais, este artigo tem como objetivo apresentar uma análise sobre as consequências geopolíticas da implantação do conceito de território econômico, introduzido no Brasil através de normas internacionais de contabilidade.

Comprova-se, mais uma vez, que a contabilidade está inevitavelmente associada ao exercício do poder em suas diversas esferas. Assim como na esfera internacional, no âmbito nacional é através dela que o cidadão e o empresário brasileiro sente o peso da Receita Federal, Estadual ou Municipal.

É importante mostrar aos profissionais da Ciência Contábil as profundas mudanças que estão sendo introduzidas no relacionamento econômico entre os países através da Contabilidade.  Isto serve não somente para chamar a atenção dos profissionais sobre as oportunidades abertas nessa área, mas também para que assumem um papel ativo na discussão dos problemas apresentados, hoje enfatizado e discutido por economistas.

Ao abordar o poder associado à Contabilidade, deve-se começar por lembrar que ela não envolve apenas valores monetários, nem se restringe a pessoas físicas e empresas ou outras entidades jurídicas, públicas e/ou privadas. Esse poder está também presente em nossas contas externas (Balanço de Pagamentos) e nas Contas Nacionais. A mais recente mudança de critério do FMI acarretou um acréscimo na dívida externa brasileira de mais de 120 bilhões de dólares.

As mudanças ocorridas nas Contas Nacionais e no Balanço de Pagamentos foram tão significativas quanto às mudanças ocorridas na contabilidade empresarial a partir de Dezembro de 2007, com a sanção da Lei 11.638 (Brasil, 2007) (para alteração da Lei 6.404), momento em que ocorre a maior revolução contábil no Brasil dos últimos 30 anos. É nesse momento que os profissionais da Contabilidade aprofundaram seus conhecimentos acerca das mudanças introduzidas para adequar, ao nível global, as demonstrações Financeiras.

A Lei 11.638 usou a estrutura já existente do CPC (Comitê de Pronunciamentos Contábeis), que havia sido criado em 2005 pelo CFC (Conselho Federal de Contabilidade). Este órgão ficou responsável por traduzir os padrões internacionais para o português e, também, por adaptá-los à realidade brasileira, emitindo Pronunciamentos, Interpretações e Orientações técnicas convergentes com as normas internacionais. A Comissão de Valores Mobiliários – CVM aprova e torna obrigatória a adoção de pronunciamentos. Os líderes da formulação da metodologia que rege essas contabilidades são respectivamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI.

Este artigo, após a introdução, está organizado em quatro capítulos (com seções), onde no primeiro é discutido o Referencial Teórico, no segundo as Consequências da Adoção do Conceito no Comércio Exterior, no terceiro a Defesa do Território Nacional e no quarto a Conclusão.

2.     Referencial teórico

2.1. Mudança no conceito de comércio internacional

A concepção vigente de “território econômico” deriva da substituição do conceito do comércio internacional que passou do comércio realizado entre as fronteiras físicas dos países para o de comércio realizado entre os residentes e não residentes.

Ela tem origem na edição de 1993 do “Sistema de Contas Nacionais (SNA93) (OECD, 1993), produzido conjuntamente pela OCDE, a Divisão de Estatísticas Nacionais da ONU, o FMI, o Banco Mundial e a Comissão da Comunidade Europeia”[4], como consta no site da Organização para Cooperação para o Desenvolvimento Econômico – OCDE, ou seja, participaram da introdução desse conceito as entidades internacionais que representam o cerne do poder econômico internacional.

Sutilmente, o SNA93 introduziu os conceitos de exportação e importação de bens e serviços que expressam essa mudança, sem assinalar, no entanto, sua profundidade. Ao contrário, para amenizá-la, indica sua coerência com o Balanço de Pagamentos[5].

Aparentemente, a nova definição expressa o conceito tradicional. Com efeito, o comércio entre os residentes no Brasil e os “não residentes” parece coincidir com o que entendemos como comércio exterior. A interpretação naive é que os residentes no Brasil importam ou exportam para residentes no estrangeiro (não residentes) e nada mudou.

2.2. Conceito de residente e não residente

Em seguida à edição do SNA93, foi publicado o BPM5, 5ª Revisão do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimentos que, em sua introdução, explicita que sua preparação foi feita levando em conta os trabalhos do Sistema de Contas Nacionais para 1993 e que a sua elaboração havia sido discutida em uma reunião de experts em março de 1992[6].

O Conceito e Definição de residência (Banco Central do Brasil, 2001) são definidos pelo BPM5[7] como um atributo aplicado a uma unidade de balanço de pagamentos que define o limite da produção doméstica para definição do PIB. Ele “não é definido pela nacionalidade ou critério legal”. Além disso, “os limites dos países reconhecidos para fins políticos nem sempre são apropriados para fins econômicos”. A residência é definida ao país “centro de interesse econômico” a que está subordinada a unidade de produção.

Nas definições do Manual do FMI, uma unidade de produção “não residente” instalada no Brasil terá sua contribuição ao PIB alocada a uma unidade de balanço de pagamento de outro país. Nesse caso, uma troca realizada dentro do País passa a ser contabilizada entre o país da unidade “não residente” e o Brasil. Isso acontece porque não existe registro de comércio internacional entre pessoas ou empresas, ele é registrado entre os países a elas correspondente. Ou seja, os “não residentes”, mesmo que estabelecidos através de empresas no Brasil constituem uma unidade de produção (e do balanço de pagamentos) de outro país localizada dentro de nossas fronteiras.

O conceito de “comércio entre residentes e não residentes” é um mero eufemismo que evita dizer que a troca não se dá mais entre países de origem do produto e o comprador, mas entre o país cujos residentes detêm o capital de produtor final e o comprador. Ou seja, como não existe registro de comércio internacional entre residentes e não residentes, o comércio internacional continua sendo registrado entre os países assinalados ao residente e ao não residente.

O que o novo sistema do SNA93 faz, relativamente ao antigo, é subtrair, no registro do PIB, o valor do bem do país de origem para atribuí-lo ao país cujo residente detém o capital de sua produção.

Ou seja, a mudança de conceito de comércio externo, foi feita dentro do Sistema das Contas Nacionais para permitir a alocação da produção dos países coerente com esse conceito de comércio exterior posteriormente explicitado nas revisões periódicas do Manual de Balanço de Pagamentos editado pelo FMI.

2.3. Conceito de território econômico

A definição de território econômico que consta do SNA93[8] é bem próxima à tradicional do território de um país (território + mar territorial + espaço aéreo). Não havia sido introduzido, por exemplo, o conceito de “enclaves” presente no BPM6[9] havendo, inclusive, no texto do SNA93, um contraditório parêntese que parece desmentir o afirmado (item 6c da nota de rodapé). Talvez seja uma “ambiguidade construtiva”, como as que frequentemente são utilizadas para resguardar suscetibilidades diplomáticas.

Para que o sistema fizesse sentido, foi introduzido no balanço de pagamentos o conceito de território econômico de um país. Essas fronteiras do território econômico não coincidem mais com suas fronteiras geográficas. Elas são agora estabelecidas considerando um novo desenho geográfico onde o que interessa é a residência nacional atribuída ao comando da unidade de produção.

3.    Consequências da adoção do conceito de comércio exterior sobre o Território Econômico Nacional

Definidas as novas fronteiras do que é chamado de Território Econômico, as mudanças nos registros de importação e exportação são uma mera consequência dessa redefinição de fronteiras.

Como foi descrito no item anterior, a mudança de conceitos foi gradualmente introduzida. Manteve-se a prática, pós 1993, de que o território econômico nacional coincidia com a definição legal de nosso Território Nacional. Do ponto de vista contábil, não obstante o novo conceito, tudo que fosse produzido dentro do Brasil era produto nacional. A mudança não havia resultado em efeitos práticos. Estes só passaram a chamar alguma atenção quantitativa através da adoção da 6ª Revisão, integralmente adotada pelo Banco Central do Brasil – BCB na qual os novos conceitos foram refletidos em normas e procedimentos. Na aplicação da 6ª revisão houve uma mudança quantitativa de bilhões de dólares como será mencionado a seguir.

Se o território econômico de um país sofre acréscimos, logicamente há decréscimos em outros países. Do ponto de vista do Brasil, o “território econômico nacional” é o que chamamos “território nacional” menos o ocupado por embaixadas, unidades culturais, bases militares, navios, sondas, aeronaves e os chamados “enclaves”. Os enclaves são unidades de produção em zonas com regime jurídico especial como as zonas de livre comércio ou assemelhadas. Deve-se chamar a atenção que, também aqui, parte-se de um conceito bem admitido de seção mútua dos territórios ocupados pelas embaixadas para introdução de outros enclaves ou assemelhados. Entre eles, está o de navios, sondas e outros veículos, que funcionam como “enclaves” no território do país receptor. Isso é muito importante no caso de exploração de petróleo e gás no mar[10]. A partir da 6ª revisão do Manual do FMI de Balanço de Pagamentos, chamada BPM6 (Banco Central do Brasil, 2015), foi também excluído do PIB nacional o espaço econômico ocupado por instalações de produção de “não residentes”. O resultado disto é que produtos locais, mesmo que negociados em reais, passaram a ser considerados estrangeiros; se consumidos no Brasil, entram no rol das importações e, se exportados, não são considerados brasileiros. A mesma lógica aplicada indica que esse espaço econômico passou a ser alocado ao país do “não residente”. O território econômico do país cujos residentes detém os meios de produção passa a incluir esses espaços econômicos conquistados no País[11].

Finalmente, o BPM6 inova em relação às revisões anteriores, indicando mais claramente o que deve ser subtraído da produção nacional (do PIB) e das exportações e acrescentado às importações em virtude da aplicação do conceito de território econômico ao espaço produtivo de empresas pertencentes a não residentes. As normas do FMI são bem explicitas e incluem a produção de petróleo, gás, eletricidade e água. Outro ponto que é esclarecido é o mecanismo de definir “residentes e não residentes”.

Todas essas modificações estão sendo feitas através da Contabilidade (a Nacional e a do Balanço de Pagamentos) como assinalado em (Sena, et al., 2018) no artigo “O Poder da Contabilidade”. As normas internacionais são automaticamente internalizadas por portaria do Banco Central ou nota metodológica do IBGE, aparentemente sem criticá-las do ponto de vista do País.

Uma nova frente de avanços para implantar inteiramente o sistema é indicada no BPM6: Trata-se de modificar a contabilidade das empresas para se adaptar a estes novos conceitos a fim de torná-los efetivos[12]. O Manual do FMI indica, inclusive, que empresas com capitais mistos (de residentes e não residentes) devem adaptar sua contabilidade para separar os dois tipos de produção. No caso das empresas, as normas internacionais são adaptadas no Brasil pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, de maioria empresarial, e, homologadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, governamental.

O conceito de território de um país está muito associado à sua própria definição geográfica, jurisdicional e econômica. Ele é a própria imagem do que nos vem à mente quando nos referimos ao Brasil. Este conceito de território é comum a várias línguas e países, fazendo parte, inclusive da definição consensual do que é o país.[13] Por essa razão, a escolha do termo “território” para designar o espaço econômico conquistado pelo capital externo deve ser encarada como uma afirmação do direito nacional do país de origem do capital sobre a área econômica conquistada no país receptor.

O FMI poderia ter optado em falar apenas em unidade de balanço de pagamentos de outro país no território do país receptador. Preferiu, no entanto, criar um conceito que é o conjunto de unidades de balanço de pagamentos alocadas a um país e denominou isto de Território Econômico. Sua definição parte do conceito de Território Nacional e acrescenta (e subtrai) nele (ou dele) alguns espaços e indica que é uma extensão desse conceito. Isso logicamente induz aos países a aplicarem ao Território Econômico os conceitos de soberania e defesa associados ao conceito de Território Nacional.

A análise do Manual de Balanço de Pagamentos do FMI mostra uma grande preocupação dos elaboradores em definir a residência de pessoas físicas não obstante o fato de que são pessoas jurídicas as normalmente envolvidas. Isso se explica pelo fato de serem as pessoas físicas que definem o “centro de interesse econômico”. Também existe um cuidado em definir a propriedade dos locais e terrenos embora também o aluguel viabilize a definição de território econômico. Isso chama a atenção para a necessidade de regulamentar a posse de terras ou locais de maneira a defender o território econômico. Chama ainda atenção, a substituição do conceito de cidadania pelo conceito de residência, o que torna as migrações de indivíduos uma variável que influi na extensão do território econômico nacional. O conceito também torna as regulações baseadas na cidadania ou naturalidade, de certa forma obsoletas.

4.    A defesa do território econômico nacional

O próprio Banco Central calculou o impacto dessas mudanças com a introdução da BPM6 e chegou à conclusão que essa revisão das normas subtraiu 11 US$ bi do saldo da Balança Comercial do Brasil entre 2010 e 2015. O maior impacto, no entanto, é na conta capital onde o déficit nas transações correntes aumentou cerca de 80 US$ bi e na dívida externa onde o impacto foi de 174 US$ bi. Tudo isso com a simples revisão da interpretação das mesmas regras básicas. Os impactos quantitativos mencionados já são líquidos[14].

Pode-se pensar nos tipos de ações que poderiam ser aplicados para defesa do Território Econômico Brasileiro.

4.1. Maior Seletividade na Adoção de Normas Contábeis

O Brasil adotou pipelines para introduzir normas internacionais em sua contabilidade nacional, externa (balanço de pagamentos) e empresarial. Como mencionado, a última revisão das normas do FMI provocou impactos no PIB, na balança comercial e na dívida externa do País cujo total é da ordem de 200 bilhões de dólares ou 10% do PIB. Este impacto passou, até aqui, quase despercebido nas discussões nacionais.

Este ensaio revela que a adoção de regras internacionais, aceitas automaticamente, resulta em uma redução do Território Nacional em sua dimensão econômica. Ao reconhecer, em nossas estatísticas, essa redução, estamos potencialmente admitindo restrições a nossa Soberania sobre parte considerável do Território. Uma maior seletividade deveria ser adotada sobre a adoção de normas internacionais e suas consequências sobre a economia nacional devem ser analisadas por órgão superior.

4.2. O Território Econômico Nacional é assunto de Segurança Nacional e merece análise de órgãos encarregados da área

Os conceitos de contabilidade, adotados pelo Brasil, têm consequências importantes sobre a integridade de nosso território. Isso deve merecer atenção dos órgãos do Executivo que se ocupam da Segurança Nacional, das Relações Exteriores, da Economia e da Defesa. Também o Legislativo precisa estar atento ao processo em curso para que as leis elaboradas cumpram o preceito constitucional (Art. 48, V) que lhe atribui a responsabilidade pelos limites do Território Nacional.

A opção do Brasil em simplesmente se negar a fazer parte do Sistema Internacional não parece realista, já que a grande maioria dos países aderiu aos seus princípios. Além disso, as normas têm aspectos positivos quando ajudam a refletir a situação real das contas externas e as vulnerabilidades da situação econômica e financeira. Exemplos disso foram mostrados no artigo “A Dívida Externa Reapareceu?” (Feu Alvim, et al., 2017). Parece ser também útil, a apuração de Passivo e Ativo na Posição Internacional de Investimentos – PII que são medidas mais abrangentes da vulnerabilidade externa que já atinge níveis preocupantes no Brasil.

No entanto, existem distorções na aplicação da metodologia que denunciam a participação preponderante em sua elaboração pelos países ricos. Uma delas é a inclusão na dívida pública do País receptor dos investimentos e reinvestimentos intercompanhia. Por esse mecanismo, mesmo a reaplicação de lucros auferidos no Brasil em novos investimentos ou reposição dos antigos são registrados como dívida nova. Note-se que em uma empresa de capital preponderantemente de não residentes, a produção tende, na medida em que se apliquem as regras do FMI, a não ser considerada no PIB brasileiro. Ou seja, os investimentos e reinvestimentos geram aumento da dívida externa, mesmo a operação não envolvendo novos recursos externos. Simplesmente estamos incluindo na dívida externa do País uma dívida relacionada à compra ou reposição de instalações que podem deixar de ser brasileiras e cessar de gerar produto aqui, simplesmente com a mudança de sua natureza da empresa de “residente” para “não residente” na decisão sobre quem exerce o domínio econômico sobre ela.

O Banco Central resiste à inclusão na dívida externa da referente aos investimentos matriz-filial e publica o total da dívida externa e outro total de “dívida externa incluindo operações intercompanhia”. Nas estatísticas internacionais, publicadas pelo Banco Mundial e que influem na avaliação do risco país, essa restrição inexiste.

4.3 Legislação e ação diplomática visando à defesa do Território Econômico Nacional

Uma posição crítica frente aos mecanismos instalados e uma ativa articulação técnica e diplomática poderiam ser úteis, para a própria saúde e justeza do Sistema Internacional.  A aplicação automática das normas externas pode e deve ser atenuada e é importante que a legislação interna considere a nova realidade e reflita os interesses do País.

De nada adianta, por exemplo, considerar brasileiras empresas que apenas são registradas no País e que, na apuração do PIB, possam vir a ser consideradas externas. Igualmente, a concessão de exploração de bens naturais deve levar em conta a perda de soberania econômica sobre as instalações de extração e do produto.

A classificação de empresas como residentes ou não no País é determinada pelo Manual BPM do FMI na versão vigente (atualmente a de № 6). As definições de quando uma unidade de uma empresa (escritório de construção, por exemplo) possa ser considerada uma unidade de Balanço de Pagamentos não depende nem mesmo de uma formalização da entidade no país receptor. O princípio geral adotado é que “O BPM6 define território econômico, como sendo a área sob controle econômico efetivo de um único governo”. Também esclarece que, ao contrário do adotado no BPM5, a continuidade do território não precisa mais existir. Como consequência, podem ser estabelecidas “ilhas” em territórios de outros países sem necessidade da continuidade de território[15]. Isto abre espaço para definições de espaços semelhantes a “enclaves” no território do país receptor.

Na definição de quem exerce o controle da pessoa jurídica é importante a residência da(s) pessoa(s) física(s) que detém seu controle. Inclusive, deve-se considerar o caso em que a pessoa jurídica pode mudar de território econômico por migração da(s) pessoa(s) física(s) que a controla(m). Deixou de ser importante a noção de cidadania ou naturalidade da pessoa física nas regras ditadas pelo FMI e adotadas aqui pelo Banco Central. Importa sua residência. Esta é determinada pelo local onde passa a maior parte do tempo[16], mas considerando também a situação de seu núcleo familiar. A mudança de residência de pessoa física, quando acarreta mudanças no controle de pessoa jurídica, também pode determinar sua migração de país que detém seu território econômico[17].

Também são considerados na determinação de se uma pessoa jurídica é residente ou não residente, outros fatores relacionados com o regime jurídico e tributário da entidade. O fator fundamental é “o efetivo controle sobre a entidade jurídica”. O Manual apresenta, no entanto o princípio geral que rege esse conceito:

BPM6 General Principles 4.113: “The residence of each institutional unit is the economic territory with which it has the strongest connection, expressed as its center of predominant economic interest” (from SNA 2008).     
Tradução própria: A residência de cada unidade institucional é o território econômico com o qual tem a conexão predominante definida por seu centro de interesse econômico. O princípio é o mesmo adotado no Sistema de Contas Nacionais, em sua versão de 2008.

O BPM6 apresenta, no seguimento, critérios específicos para facilitar essa determinação que estão, naturalmente, mais sujeitos a variações de interpretação. Particularmente, na definição de “território econômico”, as normas BPM têm variado, em suas diferentes revisões e a profusão de casos especiais tratados pelo Manual indica que esse dinamismo vai continuar.

Tudo isto chama à atenção para que a adoção de “pacotes” de normas de organismos internacionais, pelas entidades brasileiras com responsabilidade regulatória, sujeita o País ao arbítrio de interesses externos em operações que envolvem centenas de bilhões de dólares. Notar que a capacidade de influência do Brasil na determinação dessas normas é bastante restrita.

5.     Conclusão

A análise preliminar aqui realizada pôde apenas levantar alguns aspectos que parecem importantes sobre o assunto e mostrou que existem implicações na adoção de normas que ultrapassam a competência dos órgãos que hoje estão encarregados do assunto, a saber: Banco Central (Balanço de Pagamentos), IBGE (Contas Nacionais) e Comitê de Pronunciamentos Contábeis (normas de contabilidade de grandes empresas, por delegação da CVM). O objetivo deste trabalho foi chamar a atenção para os procedimentos da contabilidade nacional e externa que são de importância estratégica para a Nação Brasileira.

O assunto, por estar envolto em “tecnicalidades”, parece estar passando à margem de uma análise dos órgãos encarregados de zelar pela integridade nacional, inclusive Congresso Nacional e altas autoridades e Conselhos do Executivo nas áreas de Segurança Nacional, Relações Exteriores, Economia e Defesa. Quando se percebe que a adoção de normas internacionais tem impacto de centenas de bilhões de dólares em nossas contas externas e está atingindo a integralidade do Território Nacional não parece possível continuar a tratar o assunto apenas em seus aspectos técnicos.

Bibliografia

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—. 2015. 6ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6). BPM6. [Online] Abril de 2015. https://www.bcb.gov.br/pt-br/#!/n/6MANBALPGTO.

Brasil. 2007. LEI N° 11.838 de 28 de dezembro de 2007. Casa Civil da Presidência da República. [Online] 28 de dezembro de 2007. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11638.htm.

Conselho Federal de Contabilidade. 1994. RESOLUÇÃO CFC N.º 774/94. Apêndice à Resolução sobre os Princípios Fundamentais de. Contabilidade. [Online] 16 de dezembro de 1994. http://app.senar.org.br/legislacao/setor_cont/res_cfc_774.pdf.

FEA USP. O que é a Contabilidade. FEAUSP. [Online] https://www.fea.usp.br/contabilidade-e-atuaria/graduacao/o-que-e-contabilidade.

Feu Alvim, C. e Mafra, O.Y. 2017. Economia e Energia. E&E Nº 97. [Online] Ecen Consultoria, outubro a dezembro de 2017. http://ecen.com.br/wp-content/uploads/2017/11/eee97.pdf.

IMF. 2009. INTERNATIONAL MONETARY FUND. Balance of Payments and International Investment Position Manual. [Online] 2009. https://www.imf.org/external/pubs/ft/bop/2007/pdf/bpm6.pdf.

OECD. 1993. OECD. System of National Accounts 1993. [Online] 1993. http://www.oecd.org/sdd/na/systemofnationalaccounts1993.htm.

Sena, P., Feu Alvim, C. e Guimarães, L. 2018. Economia e Energia. E&E Nº 98. [Online] Ecen Consultoria, janeiro a março de 2018. http://ecen.com.br/wp-content/uploads/2018/04/eee98p.pdf.

Notas:

[1] Assegurar a integridade do território nacional; defender os interesses e os recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros; proteger os cidadãos e os bens do país; garantir a soberania da nação.

[2] Sustentar a união, integridade e a independência do Brasil.

[3] Balance of Payments and International Investment Position Manual Sixth Edition (BPM6) https://www.imf.org/external/pubs/ft/bop/2007/pdf/bpm6.pdf

[4]The System of National Accounts, 1993 (SNA93) was produced jointly by the OECD, the United Nations Statistical Division, the International Monetary Fund, the World Bank and the Commission of the European Communities. SNA93 provides a comprehensive accounting framework within which economic data can be compiled and presented in a format that is designed for purposes of economic analysis, decision-taking and policy-making. It describes a coherent, consistent and integrated set of macroeconomic accounts balance sheets and tables based on a set of internationally agreed concepts, definitions, classifications and accounting rules. The accounts themselves present in a condensed way a great mass of detailed information, organized according to economic principles and perceptions, about the working of an economy.  

 http://www.oecd.org/sdd/na/systemofnationalaccounts1993.htm

[5] Definição de importação de bens e serviços no glossário do SNA93: “Imports of goods and services consist of purchases, barter, or receipts of gifts or grants, of goods and services by residents from non-residents; the treatment of exports and imports in the SNA is generally identical with that in the balance of payments accounts as described in the Balance of Payments Manual”. Nota: A afirmação não é rigorosamente verdadeira porque o Manual ainda não fora publicado, mas, o conceito já fora aprovado pelo grupo de experts (1992) e quase certamente já estava disponível na ocasião.

[6] An additional impetus to the preparation of the fifth edition of the Manual was the work undertaken to revise the system of economic and financial statistics encompassed in the System of National Accounts 1993 (SNA). There was the need to achieve, to the maximum extent possible, harmonization between the two systems and with IMF statistical systems pertaining to money and banking statistics and government finance statistics.

Most of the original drafting was done by Mr. Bame. He also was responsible for subsequent redrafting undertaken to reflect comments received from national compilers and concerned international and regional organizations and to incorporate conclusions that were reached at the meeting of balance of payments experts held at IMF headquarters in March 1992. (Nota: Maria Oliveira Nabao participou como expert brasileira).

[7] Concept and Definition of Residence:

  1. Residence is a particularly important attribute of an institutional unit in the balance of payments because the identification of transactions between residents and nonresidents underpins the system. Residence is also important in the SNA because the residency status of producers determines the limits of domestic production and affects the measurement of GDP and many important flows.
  2. The concept of residence used in this Manual is identical to that used in the SNA. The concept is not based on nationality or legal criteria, although it may be similar to concepts of residence used for exchange control, tax, and other purposes in many countries. The concept of residence is based on a sectoral transactor’s center of economic interest. Moreover, country boundaries recognized for political purposes may not always be appropriate for economic purposes. Therefore, it is necessary to recognize the economic territory of a country as the relevant geographical area to which the concept of residence is applied. An institutional unit is a resident unit when it has a center of economic interest in the economic territory of a country.

[8] SNA93: The economic territory of a country consists of the geographic territory administered by a government within which persons, goods, and capital circulate freely; it includes: (a) the airspace, territorial waters, and continental shelf lying in international waters over which the country enjoys exclusive rights or over which it has, or claims to have, jurisdiction in respect of the right to fish or to exploit fuels or minerals below the sea bed; (b) territorial enclaves in the rest of the world; and (c) any free zones, or bonded warehouses or factories operated by offshore enterprises under customs control (these form part of the economic territory of the country in which they are physically located).

[9] BPM6 (tradução própria): Integram o espaço econômico (a) a área de terra; (b) o espaço aéreo; (c) águas territoriais, incluindo áreas sobre as quais a jurisdição é exercida sobre direitos de pesca e direitos sobre combustíveis ou minerais; (d) o território marítimo, como ilhas que pertencem ao território; e (e) enclaves territoriais no resto do mundo. Estas são áreas de terra claramente demarcadas (como embaixadas, consulados, bases militares, estações científicas, gabinetes de informação ou imigração, agências de ajuda, escritórios de representação do banco central com status diplomático) que estão fisicamente localizados em outros territórios e utilizados pelos governos que possuem ou alugam para fins diplomáticos, militares, científicos ou outros, com o acordo formal dos governos dos territórios onde as áreas terrestres estão localizadas fisicamente. Essas áreas podem ser compartilhadas com outras organizações, mas as operações devem ter um alto grau de isenção das leis locais para serem tratadas como um enclave. No entanto, as operações governamentais que estão totalmente sujeitas às leis da economia anfitriã não são tratadas como enclaves, mas como residentes na economia hospedeira.

[10] No caso da produção de petróleo e gás, por exemplo, as atuais plataformas são navios considerados automaticamente como parte do território do país proprietário. Nesse caso, não se trata apenas do território econômico nacional, mas do Território Nacional objeto, em países como os EUA, de medidas de defesa nacional quando ameaçados, não importando sua localização. Notar ainda que os EUA não reconhecem a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e que parte do pré-sal está fora da zona já demarcada junto a esta convenção como Zona Econômica Exclusiva do Brasil. Temos ainda o precedente, no caso contestado pelos EUA, das ilhas artificiais chinesas que estão sendo usadas para reivindicar o domínio do País sobre as “águas territoriais correspondentes”.

[11] Existem é claro, movimentos nos dois sentidos, como indicam os números o resultado líquido é negativo para a balança comercial, o saldo das transações correntes e a dívida externa do Brasil.

[12] BPM6 (numeração do original):4.6 O território econômico tem uma característica de jurisdição legal e também uma localização física, de modo que as corporações criadas ao abrigo da lei fazem parte dessa economia. Os conceitos de território e residência econômica destinam-se a garantir que cada unidade institucional seja residente de um único território econômico. O uso de um território econômico como uma unidade do sistema das estatísticas econômicas significa que cada membro de um grupo de empresas afiliadas faz parte da economia da qual é residente em vez de ser atribuído à economia de sua sede social. O foco em dados para um território econômico significa que, em alguns casos, uma entidade jurídica pode ser dividida para fins estatísticos em unidades separadas em diferentes territórios, conforme elaborado nos parágrafos 4.26-4.49.  http://www.imf.org/external/pubs/ft/bop/2007/pdf/chap4.pdf

[13] França: La notion de territoire national concerne donc la portion de surface qui appartient à un pays en particulier et sur laquelle un État exerce la souveraineté. Il s’agit non seulement d’un espace de terre mais aussi d’un espace aérien et maritime si le pays en question a des côtes.

EUA: The United States territory includes clearly defined geographical area and refers to an area of land, air, or sea under jurisdiction of United States federal governmental authority (but is not limited only to these areas). The extent of territory is all the area belonging to, and under the dominion of, the United States of America federal government (which includes tracts lying at a distance from the country) for administrative and other purposes.

[14] Analogamente, devem ser contabilizadas na questão de território nacional as perdas líquidas tendo em vista que existe um “território brasileiro” no exterior os espaços correspondentes ocupados física ou economicamente por instalações governamentais brasileiras ou por empresas no exterior de propriedade de residentes no Brasil. Obviamente, o que seria “território econômico brasileiro” no exterior é muito menor do que o “território estrangeiro” no País. Na proporção de investimentos diretos e ações na bolsa seria de ¼ do “território estrangeiro” no Brasil. Também deve ser considerado que nossa capacidade de “projeção de poder” é bem mais restrita do que a das nações ricas.

[15] Da Nota Metodológica N° 1 do BCB: 3.5 “O BPM6 define território econômico como a área sob efetivo controle econômico de um único governo; (par. 4.4). De forma distinta do BPM5, no BPM6 não existe mais requerimentos de livre circulação de pessoas, bens e capitais. No BPM6, embaixadas, bases militares e eventuais outros enclaves continuam pertencendo ao país de origem, e o território econômico não é necessariamente  contínuo.

O novo manual reforça que um escritório ou representação comercial, ainda que não formalizado enquanto empresa ou personalidade jurídica, pode ser classificada como unidade institucional, para fins de Balanço de Pagamentos. Por exemplo, o escritório de uma obra de construção civil, mesmo não sendo empresa formalizada, poderia figurar como unidade capaz de efetuar transações econômicas. Conforme o BPM6, o escritório seria considerado residente no país da obra, e não no país da matriz da empresa construtora, caso possuísse: i) contas contábeis separadas da matriz; e ii) obrigações locais junto ao sistema tributário ou obra com duração superior a um ano (par. 4.27)”. Observe-se que a opção default é classificar como “não residente” e assinalar a produção no país da matriz, para ser residente é necessário cumprir as condições enumeradas.

[16] Da Nota Metodológica N° 1 do BCB: 3.5: “Não há mudanças substantivas na definição de residência. Entretanto, o BPM6 especifica o tratamento para indivíduos que possuem domicílio em diferentes territórios. Nesse caso, o BP considerará a pessoa como residente no local em que passar a maior parte do tempo”

[17]Tradução de BPM6, item 4.165: “Famílias ou seus membros individuais podem mudar o seu território de residência. Porque todos os membros de um agregado familiar são residentes do mesmo território, o movimento de um indivíduo pode exigir que a pessoa saia de uma família e se torne membro de outra agregação familiar. A mudança na residência por um proprietário de um ativo ou alguém que tenha um passivo exige uma reclassificação, porque nenhuma troca é feita entre duas partes e, consequentemente, não ocorre uma transação” (no Balanço de Pagamentos).

Conteúdo E&E 101

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O Território Nacional Brasileiro é Nosso?


Economia e Energia – E&E   Nº 101,  outubro a dezembro de 2018
ISSN 1518-2932

Palavra do Editor:

O TERRITÓRIO ECONÔMICO BRASILEIRO É NOSSO?

Neste número voltamos a abordar as consequências para o Brasil das pouco comentadas modificações das Contas Nacionais, contas externas (Balanço de Pagamentos) e da contabilidade das grandes empresas que são modificadas por deliberações internacionais com adoção quase automática (pipelines) sem que tenham que passar pelas altas autoridades do poder Executivo ou pelo Legislativo e, até agora, sem contestações relevantes no Judiciário.

Mostra-se que estas alterações atingem a Soberania Nacional e estão abalando sua própria integridade. Paulatinamente, o conceito de Território Nacional é superado pelo Território Econômico Nacional. O conceito de cidadania é sobreposto, e até mesmo superado, pelo de “residente” e o conceito de “empresa nacional” é substituído pelo de “empresa residente”.

A produção de empresas “não residentes” faz parte da produção de outro país mesmo que tenha origem no subsolo brasileiro e mesmo que estas empresas sejam propriedade de brasileiros natos, mas “não residentes”.

Por outro lado, esta contabilidade é bastante reveladora da dependência econômica e financeira que a participação de capitais de “não residentes” trás para nossa economia.

Carlos Feu Alvim

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Parcerias no Setor Nuclear Brasileiro: Condições de Contorno

Artigo:               

CONDIÇÕES DE CONTORNO PARA
PARCERIAS NO SETOR NUCLEAR BRASILEIRO

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra
feu@ecen.com e olga@ecen.com

Resumo

A maior participação do capital privado na área nuclear se inscreve dentro da tentativa geral de levantar os obstáculos para o desenvolvimento na área.

Como se trata de uma área reconhecidamente estratégica, por razões que são enumeradas no trabalho, tem-se que definir os limites do que é estratégico e até onde vai a participação do Estado

Palavras Chave

Angra 3, balanço de pagamento, contas nacionais, monopólio nuclear, parcerias,  RMB, radiofármacos, setor nuclear, área estratégica.

_______________________________

 

 1.   Introdução

O tema Modelos de Parcerias no Setor Nuclear Brasileiro foi sugerido aos autores pelos organizadores do SIEN 2018[1] onde foi feita uma apresentação a respeito. A proposta deste artigo foi abordar o assunto através das condições de contorno existentes para essas parcerias no Brasil atual.

As parcerias surgem como uma maneira de renovar o ambiente institucional, no quadro atualmente existente no Brasil, onde existe o monopólio estatal sobre a maior parte das atividades nucleares. Esse monopólio pode ser, desde já, considerado uma das condições de contorno a ser discutida.

A consideração inicial que se faz é que essa abertura a parcerias pode ser encarada positivamente como uma oportunidade de suavizar o monopólio para mantê-lo em seus aspectos essenciais ou, negativamente, como uma forma de enfraquecer o monopólio e até mesmo para eliminar o uso energético nuclear no País como já fizeram alguns países.

Parte-se aqui do princípio de que o domínio da tecnologia nuclear tem um caráter estratégico e é propósito nacional manter a atividade existente e preservar os desenvolvimentos já alcançados. Para que um país alcance sucesso, em qualquer atividade de importância estratégica de longo prazo, é necessário uma Política de Estado.

Na área nuclear, isto é evidente porque os projetos nucleares de qualquer natureza forçosamente ultrapassam os períodos de um ou dois mandatos presidenciais. São exemplos a construção de reatores para geração de energia, construção de submarinos nucleares, construção de instalações de qualquer etapa do ciclo do combustível nuclear e a construção de reator de teste de materiais e produção de radioisótopos.

Uma Política Nuclear precisa ter durabilidade e isto só é possível se ela for um reflexo da vontade nacional, portanto ela necessita de um consenso nacional o que significa uma aprovação ampla, embora não obrigatoriamente uma unanimidade. Um significativo progresso foi realizado, no final desse governo através do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB (Brasil, GSI/PR, 2018) que aprovou uma Política Nuclear Brasileira que esta à espera de aprovação do Presidente da República.

No Brasil, a presença do Estado nas atividades nucleares é indispensável pela própria natureza dessas atividades. Tomando o caso mais evidente, seria impossível de se imaginar, por exemplo, transferir instalações de enriquecimento usando um processo de privatização por licitação, por mais que existam interessados.

Não que isso não seja possível em outras sociedades; os EUA optaram por ter instalações de enriquecimento por ultra -centrifugação, construídas através de capitais externos, em seu território. Lá isto é possível pelo amplo Domínio do Estado sobre toda a atividade privada na área.

No Brasil Isto significaria transmitir para particulares uma tecnologia cujo derivativo pode estar associado à produção de uma arma nuclear. No caso da venda para outros países isso significaria abrir mão do esforço realizado para vencer dificuldades, dos mais variados tipos, para desenvolver o ciclo do combustível nuclear. Vale lembrar que a transferência de tecnologia nessa área nos foi vetada e o esforço teve que ser realizado com tecnologia própria.

Um progresso na área de desestatização ocorreu através da Emenda Constitucional nº 49, de 2006 (Brasil , 2016) que autorizou a iniciativa privada, sob o regime de permissão, a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas para uso médico.

Está em discussão, entre outros assuntos, no âmbito da CDPNB a maior flexibilização da comercialização e utilização de radioisótopos de maior vida média em pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais (Anexo 1).

Portanto, dependendo da área do setor nuclear em questão, pode haver ou não, interesse do País em estabelecer parcerias internas ou externas com empresas ou instituições, publicas ou privadas, sempre que mantido o controle e supervisão governamental.

2.   O Caráter Estratégico da Energia Nuclear

A questão nuclear lida com macro-objetivos nacionais. Por essa razão, esse assunto é considerado como estratégico no Brasil e em todos os grandes países do mundo sem exceção. Ou seja, a primeira “condição de contorno” da questão nuclear é que este é um assunto estreitamente ligado aos macro-objetivos nacionais.

2.1 Macro-objetivos Nacionais Ligados ao Setor Nuclear

Deve-se lembrar, primeiramente, que os objetivos que levaram ao Monopólio Nuclear (no início da década de 60 e que aos poucos foi sendo modificado) não são mais os mesmos da época do estabelecimento do monopólio. (Artigo 177 da Constituição de 88 e Art. 21 Competência).

Na época, o Brasil ainda não renunciara à posse de explosivos nucleares bélicos o que só veio a fazer por dispositivo constitucional de 1988. Também somente em 1992, com o Acordo Bilateral com a Argentina, os países renunciaram de uma forma abrangente aos explosivos nucleares, mesmo pacíficos, aceitando, em seguida, através do Acordo Quadripartito, as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica em conjunto com a ABACC.

Por outro lado, a defesa do país frente a uma ameaça de agressão nuclear segue sendo premissa de todas as nações, mas ela só se efetiva formalmente quando claramente configurada a ameaça. Defesa nuclear própria ou através de aliados são os recursos genericamente utilizados nas regiões onde a ameaça é bem definida. Há um consenso muito amplo de que nossa região (América Latina e Caribe) não esteve nem está diretamente ameaçada por armas nucleares. A estratégia regional para manter afastada a ameaça nuclear, é não desenvolver nem admitir a presença de armas nucleares na Zona Livre de Armas Nucleares, estabelecida pelo Tratado de Talatelolco.

Explicitando, Nuclear é estratégico por duas razões principais: ser fonte de energia usada para fins de defesa e ser importante na autodeterminação energética e tecnológica.

O Brasil optou por não desenvolver armas nucleares, mas considera necessário desenvolver a propulsão nuclear e usá-la em embarcações militares, como o facultam todos os tratados até aqui firmados pelo País. Acertadamente, nossa Política de Defesa inclui como tecnologias estratégicas a nuclear, a espacial e a cibernética.

Não se pode também esquecer que existem restrições tecnológicas em várias áreas, com motivação alegadamente de proliferação nuclear, que terminam por atingir muitas outras atividades econômicas. Grupos como o NSG (sigla em inglês para Grupo dos Supridores Nucleares) denominam essas tecnologias como “duais” e controlam o acesso a elas. A única maneira efetiva de se livrar definitivamente dessas restrições é ter essas tecnologias disponíveis no País. Isso é muitas vezes necessário até para não usá-la em uma atividade e adquirir os equipamentos do exterior. A autodeterminação exige, portanto, a posse de várias tecnologias nucleares ou de tecnologias a elas relacionadas.

As discussões sobre parcerias dependem do posicionamento da sociedade sobre esses itens, porque implicam em atrair capitais privados para os empreendimentos, o que pressupõe existência de segurança jurídica e institucional.

Pode-se assinalar as principais linhas de ação relacionada a três Macro-objetivos, assinalados nos parênteses:

1. Desenvolvimento Nuclear (Defesa Nacional)

  • Acompanhar o desenvolvimento da tecnologia nuclear;
  • Desenvolver e construir um submarino com propulsão nuclear;
  • Alcançar independência em todas as fases do ciclo nuclear na fabricação de combustíveis;
  • Desenvolver o Reator Multipropósito Brasileiro, RMB para teste de materiais, produção de radioisótopos e para desenvolvimento científico;
  • Alcançar o domínio de tecnologias que possam impedir outras aplicações pacíficas.

2. Geração de eletricidade (Segurança Energética e Ambiental)

  • Desenvolver a geração de eletricidade e ser capaz de participar da indústria nuclear;
  • Terminar Angra 3 e definir um programa de centrais elétricas para atender parte da necessidade de energia firme no País e para limitar a emissão de gases de efeito estufa.

3. Maior uso de radioisótopos, sobretudo na Medicina (Segurança na Saúde)

  • Maior disponibilidade de radioisótopos, principalmente para usos medicinais;
  • Reator Multipropósito.

No que se refere ao Macro-objetivo de Segurança Institucional e Jurídica existem também providências a serem tomadas na área nuclear, no entanto, as linhas de ação ainda não estão definidas e devem se subordinar à Política Nacional Nuclear que foi aprovada pelo CDPNB e aguarda ser oficializada. Elas não envolvem diretamente o tema parcerias, mas são importantes para criar o ambiente adequado para que se desenvolvam.

Dentro desse macro-objetivo, é importante definir uma estrutura de comando do Setor Nuclear, ligada ao mais alto nível do Governo. A ativação do CDPNB com sua Secretaria Executiva localizada no Gabinete de Segurança da Presidência da República – GSI-PR é parte disto. Também é necessário equacionar a função regulatória, levando em conta as características de cada um dos macro-objetivos. Isso já foi feito para o caso do submarino nuclear com criação de agência específica para licenciamento do submarino nuclear (Marinha do Brasil, 2018) a Agência Naval de Segurança Nuclear e Qualidade.

Igualmente, para a produção, comercialização e aplicação de radioisótopos, uma estrutura mais ágil e descentralizada é necessária para a regulação. Finalmente, as funções executiva e regulatória da CNEN devem ser feitas por entidades distintas. O licenciamento de grandes instalações precisa ter um processo unificado, de preferência de uma única agência, certamente que com consulta às demais. Atualmente, existem posições divergentes das agências que chegam a impor exigências contraditórias. Há países que progrediram na unificação do processo decisório e isso é crucial para grandes empreendimentos.

2.2  Nuclear sendo Estratégico: É Necessária a Presença do Estado?       

Admitindo-se que o Setor Nuclear é estratégico, ainda resta a questão se é necessário um efetivo controle do Estado sobre suas atividades. Um forte indicador disto é aquilo que é feito, na maioria dos grandes países. Eles exercem o monopólio sobre o Setor. Pode ser um monopólio direto, como o da França, Coreia do Sul, Rússia, China e Argentina ou um forte domínio do Estado sobre o Setor como exercem os EUA através do Departamento de Energia e dos Laboratórios Nacionais e o Japão pela simbiose existente Governo/Indústria. Isto para ficar nos atores importantes na indústria nuclear mundial e em nossa vizinha Argentina, muito ativa na indústria de reatores de investigação.

Deve-se notar que mesmo em países que renunciaram ao uso energético nuclear na área civil, como a Itália, ou estão renunciando, como a Alemanha, a decisão foi de Estado. Assim como o foi a decisão de, contraditoriamente, continuar compartilhando (com os EUA, via OTAN) armas nucleares de destruição em massa, estacionadas em seu território.

No Brasil, a decisão pelo uso somente pacífico da energia nuclear é uma decisão constitucional, portanto estratégica, assim como o é a de estatizar grande parte da atividade nuclear. Trata-se, portanto, de decisões tomadas no maior nível hierárquico do País cuja essência deve, em princípio, ser mantida.

O que a Constituição estabelece para o monopólio é resumido abaixo referido ao Artigo 177 da Constituição de 88 sobre o Monopólio da União e Art. 21 da Competência:

Art. 177 § V “Explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre: pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas, sob-regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.” (Redação dada pela Emenda Constitucional № 49, de 2006). Sob Permissão são autorizadas: Comercialização e a utilização de pesquisas e usos médicos, agrícolas e industriais de radioisótopos (de modo geral), bem como, produzir isótopos meia vida igual ou superior a 2 horas. 

Ao se pensar em parcerias, pensa-se, logicamente em participação da iniciativa privada nas atividades ainda sujeitas ao monopólio. Como ponto de partida, é bom lembrar que o monopólio não exclui automaticamente essa participação. Existem vários exemplos históricos de participação de empresas, inclusive estrangeiras, em plena vigência do monopólio, anteriores, no entanto, à atual formulação constitucional. É preciso levar em conta que permanecem válidas as razões maiores que determinaram a atual redação constitucional: o uso da energia nuclear é para fins pacíficos e objeto de decisões de Estado. As modificações, se necessárias, devem preservar esses princípios inscritos na Lei Magna.

A seguir, procura-se especificar dentro dos três macro objetivos identificados, porque são necessárias parcerias, dando destaque à geração de eletricidade, preocupação maior do assunto parcerias no momento atual.

2.3 Estatizar é sempre Bom para a Autonomia Tecnógica?

Na contramão dos que consideram que somente entidades estatais podem atuar em áreas estratégicas, há o exemplo da atuação da Orquima S. A. da época de Krumholz na área de terras raras (de Souza Filho, et al., 2014). Nas décadas de 1940 e 1950, por meio da iniciativa privada (ORQUIMA S.A.), sob liderança de Pawel Krumholz, o país dominou o processo de extração, separação e obtenção de óxidos de terras raras de elevada pureza (chegando a 99,99%).

A empresa processava cerca de duas mil toneladas de monazita por ano, chegando, por exemplo, a fornecer Eu2O3 para a fabricação de barras metálicas destinadas ao controle, por absorção de nêutrons, do reator do primeiro submarino nuclear do mundo, o Nautilus. Em 1962, juntamente com Krumholz, o Brasil chegou a produzir cerca de 10 g de Lu2O3 de alta pureza
(> 99,9%); era a maior quantidade desse composto já produzida no mundo.

Neste caso, a estatização da Orquima, através da Nuclemon (subsidiária da Nuclebras) não resultou em progresso na área e o Brasil passou a mero exportador de matéria prima deixando de produzir e exportar terras raras. É verdade também que decorreu da atividade da Orquima, um reconhecido passivo ambiental, consubstanciado na chamada “torta II” um “rejeito” rico em tório, mas também contendo seus descendentes radioativos que ficou nas mãos da INB.

Como conclusão, as parcerias do capital privado na energia nuclear podem ser úteis na ajuda do financiamento daquelas áreas que já são economicamente viáveis como aconteceu com as aplicações de radiofármacos de vida curta na medicina nuclear.

Sobre a participação do capital externo, no entanto, sempre se deve ter em conta em que medida a possível desnacionalização estaria na contramão do reconhecido caráter estratégico da atividade e se isso não fragiliza a própria segurança energética. Feita esta análise, não há porque se rejeitar essa participação, se submetida às razões de Estado.

3.   As Parcerias Possíveis

3.1 Parcerias no Objetivo um:
Desenvolvimento Nuclear e Submarino

No Objetivo Desenvolvimento Tecnológico e Submarino busca-se parceria com quem está disposto a colaborar com a fabricação de submarinos, mantida a independência nas atividades tecnológicas relacionadas ao ciclo do combustível nuclear. Conforme já foi citado, a transferências de tecnologia externa é, de modo geral, bem-vinda, mas existem limitações s que temos que superar com nossos próprios recursos.

No que concerne à construção da parte convencional de submarinos foi criada a Itaguaí Construções Navais, parceria da estatal francesa Naval Group com a Odebrecht (goldenshare Marinha através de Emgepron) na construção de submarinos e que prevê a construção de quatro submarinos convencionais e um submarino nuclear sendo a parte nuclear de desenvolvimento próprio. Essa associação é uma prova cabal de que é possível uma parceria, inclusive com praticamente o total das ações privadas e com forte participação externa (Poder Naval, 2009).

A parceria interna entre o setor civil e militar deveria ser reforçada no País e é uma oportunidade importante de desenvolvimento do ciclo do combustível e no aproveitamento de seus spin-offs. A Parceria entre a Marinha e a CNEN foi muito profícua no passado, com destaque na participação do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN. Seria desejável que essa parceria interna do setor civil e militar fosse mantida de uma maneira institucional. O IPEN-SP dispõe já atualmente de toda a tecnologia para fabricação de elementos combustíveis tanto do reator IEAR1 como da crítica MB01, e do Reator Multipropósito Brasileiro, mas quem dispõe da etapa de enriquecimento a 19,99% e está desenvolvendo a etapa de conversão em escala semi- industrial é o Laboratório de Aramar que pertence à Marinha.

No projeto do Reator Multipropósito a cargo do IPEN/CNEN, que será localizado no município de Iperó no Estado de São Paulo, existem as parcerias com a INVAP, empresa Argentina, e com a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S. A. – AMAZUL. Além da produção de radioisótopos, o RMB também tem como funções básicas a realização de testes de irradiação de combustíveis nucleares e materiais estruturais utilizados em reatores de potência, bem como a realização de pesquisas científicas com feixes de nêutrons. Para este fim serão necessárias parcerias com universidades e centros de pesquisa que ora já se iniciam.

A ampliação da Usina de Enriquecimento Isotópico de Urânio na INB, para produção de material que será utilizado nos reatores de potencia continua sendo feita em cooperação com a Marinha do Brasil e esse desenvolvimento se dá com tecnologia autônoma.

Por sua vez, as parcerias com empresas privadas para o fornecimento de componentes dos elementos combustíveis devem ser facilitadas e desburocratizadas.

Existe a possibilidade de uma possível abertura no caso particular da mineração. Na área de mineração é possível a formação de associações minoritárias e isto já ocorreu no passado dentro do monopólio. A Nuclam era uma companhia mista formada na época com 51% da Nuclebras e 49% da Urangeselschaft, com compra de minério associado e compra de serviço de mineração.

A flexibilização do monopólio pode ser benéfica na área de mineração e beneficiamento de urânio, mantendo-se a comercialização no monopólio. Um ponto muito importante a ser considerado é que um estoque estratégico para atender usinas nucleares nacionais (atuais e futuras), os reatores de pesquisa e o submarino deveria estar sob ativa supervisão estatal.

3.2  Parcerias no Objetivo dois:
Construção e Operação de Usinas Nucleares (Geração de Eletricidade)

Vale lembrar que dentro do monopólio, não há restrições à contratação de terceiros, em uma ampla faixa de atividades, como ilustram os exemplos:

  • Angra 1 praticamente “chave na mão”, teve a supervisão da NUCON (empresa do grupo Nuclebras), sendo a proprietária Furnas;
  • Existe a participação tradicional de empresas privadas (nacionais e estrangeiras) na construção, montagem e fabricação de alguns componentes das usinas nucleares;
  • Durante a época da vigência do Programa Nuclear com a Alemanha, empresas mistas, muitas vezes com predomínio técnico dos alemães, participavam nas diversas etapas do ciclo nuclear.

Outros tipos de participação são ainda possíveis dentro do atual monopólio:

  • Parceria na operação da NUCLEP, área não sujeita ao monopólio;
  • Fornecimento de grandes equipamentos e serviços;
  • Participação financeira externa na Eletronuclear, sempre com caráter acionário minoritário.

Ou seja, a participação acionária na Eletronuclear, chave no processo de parcerias, não é impedida pela Constituição. No estabelecimento das condições de funcionamento dessa parceria podem surgir obstáculos legais que podem vir a necessitar de ajustes legislativos e, eventualmente, modificações constitucionais pontuais que preservem os princípios nela consagrados.

Do ponto de vista do cumprimento dos objetivos, é essencial que se observem três pontos essenciais:

  • Transferência tecnológica deve ser determinante na escolha do parceiro;
  • Devem ser consideradas as limitações de endividamento externo, essas considerações são ainda mais importantes em áreas onde possa ser rompido o monopólio.

Sobre a questão do endividamento, ou de maneira mais abrangente, do passivo externo considera-se necessário destacar alguns pontos que serão abordados no item quatro. São questões fundamentais também na abordagem das privatizações a definição e o significado de empresas “não residentes” e “residentes”.

3.3 Parcerias no Objetivo três:
Uso de Radioisótopos

Desde a década de 60, a CNEN, por meio dos seus Institutos de Pesquisa, evoluiu dos trabalhos pioneiros feitos no IPEN, para uma verdadeira indústria, fornecendo rotineiramente 38 produtos a muitos hospitais, clínicas e indústrias. Esses radioisótopos são tanto produzidos em reatores nucleares de pesquisa quanto em cíclotrons, e essenciais ao abastecimento das atividades de aplicações de radioisótopos no país.

Com a flexibilização do monopólio (Emenda Constitucional – EC, № 49/2006), que alterou dispositivos da Constituição de 1988, esse panorama foi modificado e é crescente a presença de empresas privadas na área de aplicações de radioisótopos na medicina e diagnósticos, o que mostra o acerto da medida. O setor privado teve permissão de investir nessa atividade (fabricação, comercialização e uso), podendo produzir radiofármacos com meia-vida de até duas horas, como é o caso da fluordesoxiglicose (18F-FDG), radiofármaco amplamente utilizado em diagnósticos.

Após a aprovação dessa Emenda, o número de cíclotrons produtores do 18F-FDG e, consequentemente, a quantidade de clínicas de medicina nuclear que os utilizam cresceram muito.

Na área de meias vidas mais longas, a comercialização e uso se dão mediante permissão. Deve-se considerar que a maior parte do uso de radioisótopos nessa área se dá com Molibdênio importado, gerando Tecnécio. O gerador de Tecnécio é feito no Brasil unicamente no IPEN, por constituir monopólio da união uma vez que seu precursor (Molibdênio-99) é subproduto da fissão de “minério nuclear”.

A separação é simples por passagem de um solvente, não deveria ser considerada “fabricação” e poderia ser feita por empresas particulares. A limitação a uma maior participação da iniciativa privada está vinculada à interpretação do termo fabricação que está incluído no monopólio. O grupo de trabalho GT-3 criado pelo GSI/PR esteve tratando do assunto já emitiu uma primeira proposta de ações.

Deve-se assinalar que a produção de Mo-99 a partir da fissão, envolve irradiação de urânio, separação de produtos de fissão, portanto é tecnologia sensível, próxima do reprocessamento, e faz parte do monopólio. O RMB que deverá produzir isótopos o fará por essa tecnologia.

4.   As novas regras das Contas Nacionais e do Balanço de Pagamentos

Sem muito alarde, regras do FMI para o Balanço de Pagamentos e mudanças no Sistema de Contas Nacionais, capitaneadas pelo Banco Mundial (E&E № 96) alteraram profundamente as Contabilidades Externa e Nacional do Brasil, tendo como resultado:

Investimentos e reinvestimentos de empresas não residentes no Brasil em suas filiais passaram a fazer parte da Dívida Externa do País. Recentemente os investimentos diretos em fundos de renda fixa de não residentes, também passaram a integrar a dívida externa.

A produção de empresas sobre controle de não residentes passou a ser considerada integrada ao PIB dos países dos acionistas residentes; isso se aplica especificamente à eletricidade, ou seja, a eletricidade produzida no País por empresa não residente entrará no rol das importações se consumida no Brasil, ainda que produzida com a energia hídrica (ou nuclear) brasileira.

De acordo com as regras do Balanço de Pagamentos, qualquer investimento externo realizado no país entra para o passivo externo brasileiro, registrado na Posição Internacional de Investimentos, não importando, se ostenta a classificação de investimento de risco ou aplicação de capital.

Para quem acha que isto não é importante, é útil lembrar que foi apenas uma opção contábil, o registro desse passivo como dívida externa. Isso aconteceu recentemente (2014) quando 120 bilhões de “investimentos diretos” em renda fixa foram integrados à dívida externa brasileira.

A classificação de empresas, nas Contas Nacionais e Externas (normas FMI), passou a ser de Residente e Não Residente.

Empresa Residente é a empresa que têm efetivo controle de indivíduos residentes no País. Está classificação ainda não foi inteiramente implantado e sua vigência dependerá de mudanças na contabilidade das empresas. Normas internacionais, implantadas no Brasil de forma praticamente automática pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, com predominância das associações empresariais, se encarrega dessas mudanças. No caso do Setor Elétrico, a ANEEL, na prática, simplesmente homologa o “Pronunciamento” do CPC.

Como já assinalado, investimentos e reinvestimentos externos em empresas residentes, com participação de capital de não residentes, são incorporados à divida externa.

Desta forma, a produção de eletricidade por empresas de capital externo no Brasil ou terá seu investimento e reinvestimentos registrados na dívida externa (empresas consideradas residentes) ou será classificada como produção externa (empresa não residente) e considerada importada se consumida no Brasil.

Esse é um fato não discutido atualmente no açodado processo de privatização. Por isso, faz uma enorme diferença quando privatização significa uma desnacionalização, entre a venda para não residentes ou uma venda para residentes no País.

A venda para não residentes implica em aumento imediato da dívida externa ou na desnacionalização definitiva (mudança de nacionalidade) do seu produto. Se isso se faz a preços aviltados pela crise, a consequência pode ser a perda definitiva das reservas naturais, sujeitando-se o País a importar seus próprios recursos.

Notar ainda que a determinação da pátria do capital não se dá mais por nacionalidade, mas, por residência[2]. Portanto, não basta assegurar que os setores privatizados continuem em mãos de nacionais, mas assegurar que continuem em mãos de residentes no País.

Para os que acreditaram que a dívida externa desapareceu, porque estaria anulada por nossas reservas internacionais, é bom lembrar que existem para elas dois valores:

  • O que aparece nas Notas à Imprensa do Banco Central (comparado às reservas) é a dívida externa “sem as operações intercompanhia e títulos de Renda Fixa negociados no mercado doméstico” cujo total, em dezembro de 2017 era de 321 bilhões de dólares;
  • O que incorpora os valores considerados pelo FMI que consta nas planilhas anexas do próprio Boletim que é mais do dobro da tradicional. Esta é a que será divulgada pelo Banco Mundial e considerada nas análises de risco que é de 684 bilhões de dólares.

A Tabela 4.1 mostra os valores da dívida externa no seu conceito tradicional e considerando os adicionais recomendados pelo FMI, indicados por um asterisco. São indicados ainda os percentuais do PIB envolvidos e do total das exportações bem como a dívida líquida nas duas hipóteses.

Tabela 4.1: Componentes do Passivo e da Dívida Externos

 ExternosUS$ bilhões% PIB% Export.
Dívida Externa Bruta
(conceito tradicional)
32118% 
Operações Intercompanhia (*)23613%112%
Títulos de Renda Fixa detidos
por não residentes (*)
1277%60%
Dívida Externa Bruta
(normas FMI)
68438%326%
Reserva 38621%184%
Dívida Externa Líquida “Tradicional”-65-4%-31%
Dívida Externa Líquida29817%142%
Passivo Bruto da PII158088%752%
Ativo da PII85848%408%
PII Líquido72240%344%
PIB estimado1800100%857%
Exportações21012%100%

(*) Acréscimos à Dívida resultantes de modificações introduzidas nas Contas Nacionais

A Figura 4.1 mostra estes valores para 2017 e realça o tamanho da Dívida Externa com a inclusão dos novos componentes e compara o resultado com o montante das reservas internacionais.

A dívida externa líquida, não considerando os aditivos do FMI é negativa (321 – 386 = -65 US$ bi). Na contabilidade do FMI, a dívida externa líquida brasileira é de cerca de 300 bilhões de dólares, equivalente a 17% do PIB e 142% das exportações de do ano de 2017. Chama a atenção o valor do Passivo Bruto apurado na PII que já atinge a 88% do PIB e cerca de 750% do valor das exportações. Já ficou demonstrado, que não existe barreira sólida entre o Passivo e a Dívida e não será nenhuma surpresa que novas transferências se verifiquem.

Figura 4.1: Comparação da dívida externa e reservas ao final de 2017
(*) Parcelas acrescidas por recomendação do FMI.

A Figura 4.2 mostra o processo de formação do Passivo Externo Bruto, apurado pela Posição Internacional de Investimentos, para o final de 2017. São resultados da contabilidade externa do Brasil, orientada pela Sexta Edição do Manual do Balanço de Pagamentos e Posição Internacional de Investimentos do FMI, conhecido pela sigla em inglês BPM6 (International Monetary Fund, 2009).

Aplicações em ações e outras de renda variável, outros investimentos financeiros e em bens reais são lançados no passivo externo da PII. Os rendimentos auferidos realimentam o passivo quando não são remetidos ao exterior. No caso das aplicações de renda fixa, elas foram inicialmente lançadas como investimento de risco e transferidas recentemente (2014) do “outros passivo” para a dívida externa. Os investimentos intercompanhia (matriz x filial) entram na dívida externa; os reinvestimentos também são nela lançados. Finalmente, os empréstimos, realimentados pelos juros, formam a dívida externa tradicional.

Figura 4.2: Formação do Passivo Externo na apuração da Posição Internacional de Investimento, usando a metodologia do Manual do FMI.

O Brasil e muitos outros países ditos “em desenvolvimento” passaram pelo trauma causado pela dívida externa dos anos oitenta, resultante de créditos baratos (petrodólares) dos anos setenta. A partir deste e outros traumas sucessivos passou-se a considerar os empréstimos externos como causadores da dívida externa e das crises.

Este trauma tem certa razão já que a dívida externa é considerada uma responsabilidade dos países que devem garanti-la frente aos bancos internacionais e demais fontes de financiamento. Também os credores passaram por traumas e isto motivou o FMI e o Banco Mundial a adotar o Consenso de Washington nos anos oitenta e, nos anos noventa, foram modificados, com a liderança dessas duas entidades, as Contas Nacionais, o Balanço de Pagamentos e criada a contabilidade de estoques de capital que é a Posição Internacional de Investimentos. Vários mecanismos de defesa dos credores tradicionais (de empréstimos) e dos novos credores de investimentos externos foram instalados através das modificações na contabilidade que fazem parte, portanto, do Pós-Consenso de Washington (E&E 96).

Foi por esta razão, que o Brasil providenciou uma reserva internacional que funciona como garantia da dívida. Por isso, é altamente conveniente para o governo comparar nossa dívida externa com os empréstimos de curto prazo ou com a dívida no conceito tradicional. Ao final do ano de 2017, tínhamos, neste conceito, uma dívida externa líquida negativa. Em 2010, o governo havia declarado á população o “fim da dívida externa”[3]. O que não foi esclarecido é qual o conceito da dívida externa estava em discussão.

Foi vendida aos países em desenvolvimento, dentro do pós-Conseçnso de Washington a ideia que eles deviam se abrir aos investimentos externos, considerados como fator de progresso o que não afetariam a dívida externa. Essa á ainda a linguagem usada nos países periféricos para uso interno quando se quer justificar a abertura a investimentos externos. Por essa razão, segue sendo conveniente a ambiguidade em relação ao montante da dívida externa.

O que a contabilidade externa do FMI, adotada pelo Brasil, mostra agora é uma visão que tem um viés do que é conveniente para os países credores, mas ao mesmo tempo, é realista quando assinala a pressão exercida pelo Passivo Externo sobre as economias receptadoras do capital. Essa pressão cria uma dependência que ameaça essas economias, mas ainda não foi incorporada nas discussões econômicas.

A dívida externa tradicional é apenas a ponta do iceberg e as duas dimensões da dívida externa já foram temas da presente campanha eleitoral, com contestações sobre se ela havia desaparecido ou não em 2010.

O Passivo Externo Bruto no final de 2017 já era 88% do PIB e 752% de nossas exportações anuais. Cada vez que vendemos nossas empresas ou jazidas para os não residentes, o passivo externo aumenta e, na melhor das hipóteses, também aumenta a dívida externa. Na pior, a jazida e o PIB futuro a ela associado deixam de ser nossos.

O FMI está nos prevenindo disto.

5.   A Possibilidade de Autofinanciamento de Angra 3

A tarifa de 2018 para Angra 1 e 2 é 240,8 R$/MW com uma geração média de 1572 MW que corresponde a 3,31 R$ bi por ano. Se aplicada a tarifa que se espera conseguir para Angra 3 (suposta 400 R$/MWh) para Angra 1 e 2 e se isto constituísse um fundo específico ter-se-ia um adicional de cerca de 2,2 bilhões de reais por ano que seriam praticamente suficientes para terminar Angra 3 em 6 anos.

Pode-se ainda pensar em uma tarifa comum para a energia nuclear que poderia ser um pouco menor que essa e com isso haveria condições para financiar parte de Angra 3 e facilidades para créditos adicionais.

Como isso pode ser criado como fundo, nele não incidiriam praticamente taxas e o País estaria  livre de juros sobre a nova parte.

Isso significaria um aumento de 67% sobre 2,5% da produção de eletricidade ou 1,67% sobre o custo total de produção e menos de 1% sobre a tarifa do consumidor (só seria afetado o custo sem impostos).

É claro que seria necessário aprofundar as avaliações e encontrar o caminho legal para chegar a esta decisão e trabalhar junto à sociedade para a aceitação da energia nuclear como estratégica e levar em conta suas contribuições (energia limpa) para a redução das emissões de gases de efeito estufa e a estabilidade do Sistema.

6.   Conclusão

Como conclusão, as parcerias do capital privado na energia nuclear podem ser úteis na ajuda do financiamento daquelas áreas que já são economicamente viáveis como aconteceu com as aplicações de radiofármacos de vida curta na medicina nuclear.

Ao se fazer parceria de uma área específica com a participação de capital externo, deve-se ter em conta se isso não está na contramão de seu reconhecido caráter estratégico e se não fragiliza a própria segurança energética ou o domínio do ciclo do combustível nuclear. Também devem ser levadas em conta as limitações provocadas pelo endividamento externo.

No caso da participação externa, a meta principal seria obter a tecnologia e capacitar a indústria nacional em troca da participação do parceiro no mercado interno. Para estar em melhores condições de barganha é preciso contar com o capital interno, ainda que parcialmente.

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Anexo 1: Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB

O Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB) foi criado pelo Decreto de 2 de julho de 2008 e alterado pelo Decreto de 22 de junho de 2017. O CDPNB é coordenado pelo GSI/PR e tem como missão assessorar diretamente o Chefe do Poder Executivo, por meio de um colegiado de alto nível, no estabelecimento de diretrizes e metas para o desenvolvimento e acompanhamento do Programa Nuclear Brasileiro, a fim de contribuir para o desenvolvimento nacional e para a promoção do bem estar da Sociedade Brasileira.

Na primeira reunião plenária do CDPNB nesta nova fase, dia 18 de outubro de 2017, além do Regimento Interno foi aprovada a criação de quatro grupos técnicos, para tratar de temas relevantes para o setor nuclear brasileiro:

  • GT-1: elaborar a proposta de Política Nuclear Brasileira – Coordenado pelo GSI;
  • GT-2: analisar a conveniência da flexibilização do monopólio da União na pesquisa e na lavra de minérios nucleares – Coordenado pelo MME;
  • GT-3: analisar a conveniência de ampliar a flexibilização do monopólio da União na produção de radiofármacos – Coordenado pelo MCTIC e Ministério da Saúde;
  • GT-4: propor termo de cooperação entre as partes envolvidas no desenvolvimento e operação do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) – Coordenado pelo MCTIC.

Outros Grupos Técnicos estão organizados ou em organização para atender outras áreas específicas, mas não tiveram ainda sua constituição divulgada oficialmente.

Isto significaria transmitir para particulares uma tecnologia cujo derivativo pode estar associado à produção de uma arma nuclear.

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Notas:

[1] Seminário Internacional de Energia Nuclear, realizado no Rio de Janeiro entre 25 e 26 de julho de 2018 no Espaço Furnas.

[2] Se os irmãos Batista da Free Boi houvessem decidido por fixar residência nos EUA, como aparentemente tentaram, boa parte da carne brasileira poderia passar a ser americana.

[3] Em Julho de 2007 o site das Organizações Globo anunciava (sempre procurando assinalar o viés negativo ) “Dívida externa brasileira sobe para US$ 225 bilhões em junho,  para colocar na segunda manchete: Em maio, o BC estimava a dívida em US$ 218,329 bilhões.  Reservas internacionais cresceram e atingiram US$ 253 bilhões. http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/07/divida-externa-brasileira-sobe-para-us-225-bilhoes-em-junho.html

Bibliografia

Brasil . 2016. Emenda Constitucional nº 49 de 08/02/2016. Presidência da República – Casa Civil. [Online] 08 de fev de 2016. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc49.htm.

Brasil, GSI/PR. 2018. Resolução GSI/PR nº 2, de 11.01.2018. MCTIC. [Online] 11 de janeiro de 2018. http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/legislacao/outros_atos/resolucoes/Resolucao_GSI_PR_n_2_de_11012018.html.

de Souza Filho, Paulo C. e Serra, Osvaldo A. 2014. TERRAS RARAS NO BRASIL: HISTÓRICO, PRODUÇÃO E PERSPECTIVAS. Quim. Nova. 2014, Vol. 37, Nº 4, pp. 753-760.

International Monetary Fund. 2009. Balance of payments and international investment position manua- 6th ed. Washingon D.C. : IMF Multimedia Services Division, 2009. ISBN 978-1-58906-812-4.

Marinha do Brasil. 2018. Marinha do Brasil cria a Agência Naval de Segurança Nuclear e Qualidade. Portal Orbis Defense. [Online] 09 de fev de 2018. https://www.marinha.mil.br/sinopse/marinha-do-brasil-cria-agencia-naval-de-seguranca-nuclear-e-qualidade.

Poder Naval. 2009. Itaguaí Construções Navais. Odebrecht fica com 59% do capital. Poder Naval. [Online] 10 de set de 2009. https://www.naval.com.br/blog/2009/09/10/itaguai-construcoes-navais-odebrecht-fica-com-59-do-capital/.

 

                       

O Poder da Contabilidade


Economia e Energia – E&E    Nº 98,  janeiro a março 2018

ISSN 1518-2932

O PODER DA CONTABILIDADE

Patrícia Sena,
Carlos Feu Alvim e
Leonam Guimarães

Resumo

O poder da Contabilidade está também presente em nossas contas externas (Balanço de Pagamentos) e nas Contas Nacionais. A mais recente mudança de critério do FMI acarretou um acréscimo na dívida externa brasileira de mais de 120 bilhões de dólares. O Conceito tradicional da Contabilidade Nacional é que ela referia-se a contabilidade dentro das fronteiras físicas de um país, ou seja, no Território Nacional, dentro de seus limites geográficos. A contabilidade externa se ocupava das trocas entre territórios, ou seja, através das fronteiras dos países.

Sem muito alarde, este conceito foi mudado por norma do FMI. No novo conceito, que rege essas contabilidades: as transações externas não são mais entre países, mas entre residentes e não residentes. As normas do FMI explicitam que isso é válido mesmo que o produto seja um recurso natural como a água, petróleo ou gás natural e que as transações tenham sido feitas em reais.

Palavras Chave:

Contabilidade, Receita Federal, Balanço de Pagamentos, Contas Nacionais, Contas externas, Lei 11.638, poder da contabilidade, Banco Central, FMI, BPM6.

1. Objetivo do Trabalho

A contabilidade está inevitavelmente associada ao exercício do poder em suas diversas esferas. É através dela que o cidadão e, sobretudo, o empresário brasileiro sente o peso da Receita Federal, Estadual ou Municipal. O poder da Contabilidade está também presente em nossas contas externas (Balanço de Pagamentos) e nas Contas Nacionais. A mais recente mudança de critério do FMI acarretou um acréscimo na dívida externa brasileira de mais de 120 bilhões de dólares. Foi ainda uma diferença contábil o motivo formal do impeachment da Presidente do Brasil. A contabilidade também se estende as áreas não monetárias onde é utilizada como instrumento de conhecimento e de tomada de decisão gerencial e política.

É interessante notar que este poder passa diretamente pelos profissionais da área, os contadores, mas que normalmente aparecem apenas como produtores das informações intermediárias. E é até curioso que não se tenha dado destaque a opinião de autoridades do conhecimento contábil no caso do impeachment presidencial. No caso das profundas mudanças ocorridas nas Contas Nacionais e no Balanço de Pagamentos, não consta que tenham sido ouvidos os conselhos da classe contábil.

As mudanças ocorridas nas Contas Nacionais e no Balanço de Pagamentos foram tão significativas quanto às mudanças ocorridas na contabilidade empresarial a partir de Dezembro de 2007, com a sanção da Lei 11.638 (1) (para alteração da Lei 6.404), momento que marcou a maior revolução contábil no Brasil dos últimos 30 anos. E nesse momento, os profissionais da Contabilidade aprofundaram seus conhecimentos acerca das mudanças introduzidas para adequar, ao padrão internacional, as demonstrações Financeiras.

A Lei 11.638 usou a estrutura já existente do CPC (Comitê de Pronunciamentos Contábeis), que havia sido criado em 2005 pelo CFC (Conselho Federal de Contabilidade). Este órgão ficou responsável por traduzir os padrões internacionais para o português e, também, por adaptá-los à realidade brasileira, emitindo Pronunciamentos, Interpretações e Orientações técnicas convergentes com as normas internacionais.

Este artigo tem como objetivo chamar a atenção para a importância dessas contabilidades (nacional e externa) e da necessidade da contribuição do conhecimento dos profissionais da Ciência Contábil na análise das profundas mudanças que estão sendo introduzidas. Também busca chamar a atenção sobre a oportunidade aberta aos profissionais da Ciência Contábil no Brasil de assumirem um papel mais ativo na discussão dos problemas apresentados, hoje enfatizado e discutido por economistas.

2. A Contabilidade e as Influências da Matemática em seus Primórdios na Europa

A Contabilidade é a ciência que estuda, interpreta e registra os fenômenos que afetam o patrimônio de uma entidade (2). As primeiras manifestações contábeis datam de 2000 a. C. com os sumérios. A própria Bíblia, cujos primeiros relatos são considerados a partir de (1800 a. C.) apresenta várias referências à contabilidade (3) inclusive a de ovelhas, associada à origem das técnicas contábeis. Igualmente são atribuídas à necessidades da Contabilidade, o próprio desenvolvimento da numeração e da escrita e muitos progressos na Matemática.

Não é, pois, uma coincidência que tenha sido o matemático Leonardo Fibonacci quem introduziu na cultura europeia tanto os algarismos arábicos como as técnicas contábeis. Seu livro Liber Abaci trata da Aritmética Comercial e de vários problemas ligados ao comércio. A partir do século XV coube ao Frei Luca Pacioli a divulgação do método das partidas dobradas, encerrando a fase menos organizada da contabilidade. O método consta de um capítulo de seu livro “Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalità”. Luca Pacioli é considerado o pai da contabilidade Moderna (4).

Apesar da influência matemática, a Contabilidade não é considerada uma ciência exata. Ela é uma ciência social, pois é a ação humana que gera e modifica o fenômeno patrimonial. Todavia, a contabilidade utiliza os métodos quantitativos como sua principal ferramenta, pois eles mostram o valor do patrimônio da empresa. Seu campo de atuação é bastante vasto e aplica-se a todos os aspectos socioeconômicos de uma sociedade (5). De acordo com a doutrina oficial brasileira (6) (organizada pelo CFC – Conselho Federall de Contabilidade) a contabilidade é uma ciência social, assim como, a economia e a administração.

A contabilidade como ciência social se reflete na vida de toda sociedade seja por meios da obrigatoriedade da contabilidade para as empresas (hoje imposta pelo Novo Código Civil), seja na utilização para arrecadação de impostos pelos governos. Porém o objetivo principal da contabilidade é o patrimônio, seja ele de pessoas físicas jurídicas, Estado ou Nação, visando seu controle.

3. A Contabilidade e o Poder da Informação

O registro das transações de uma companhia é de suma importância para sua sobrevivência no mercado; é por meio dessas informações que portas para negócios e oportunidades, se abrem ou se fecham. Pode-se assim dizer que, a Contabilidade é Informação expressa em números, e é por meio dessas informações que a Contabilidade produz em seus relatórios financeiros, que o real patrimônio da organização é revelado. Senão vejamos:

  1. – As mutações decorrentes das operações empresariais constituem o único veículo que um investidor nacional ou estrangeiro tem de diagnosticar a qualidade de vida e a saúde financeira de uma empresa;
  2. – É um meio também, pelo qual toda a empresa fica registrada de modo a ser avaliada no passado, presente e futuro, para que se tenha conhecimento do seu progresso, estagnação financeira ou retrocesso;
  3. – A contabilidade fornece o máximo de informações úteis para a tomada de decisões dentro e fora da empresa. É onde se enquadra o papel do contador, o qual deverá estar interagindo com os gestores de modo que, essas informações, sejam as mais objetivas e precisas possíveis, levando para a entidade os relatórios mais fidedignos da realidade empresarial e ser, assim, o melhor instrumento para a tomada de decisão;
  4. – É por meio de balanços contábeis que a organização tem ou não acesso a uma linha de crédito de instituições financeiras, seja ela pública ou privada, e até mesmo a processos licitatórios;
  5. – A contabilidade deve atender a necessidade de cada segmento, vise ele o lucro ou não. Ela permite a busca constante de respostas no mundo dos negócios, possibilitando não só que investidores se beneficiem de suas informações na corrida constante pelo lucro, como os demais cidadãos as usem na busca de melhores condições sociais. As empresas, como as organizações sem fim lucrativo, são parte integrante da sociedade e, por sua vez, exercem influência sobre ela com suas decisões. Torna-se assim a contabilidade uma ciência envolvida no contexto geral da sociedade, sendo, como já foi aqui lembrado, uma ciência social.

A contabilidade, aliada à informação, que é produzida por meio de seus relatórios e instrumentos financeiros, principalmente nos pontos citados, reforça seu poder com o da informação. O poder da contabilidade não se restringe somente em orientar onde decidir investir, ou meramente, liberar linhas de créditos, vai além atingindo a decisão de importar ou exportar, bem como, de permitir a participação em processos licitatórios. O poder de fazer provas judiciais, por exemplo, pode inclusive restringir a liberdade, entre outros. Fica claro que o poder da informação contábil, expressa em relatórios fidedignos, pode muito por seus efeitos.

4. A contabilidade ampliou seus Poderes com a Informática

Os estreitos laços com a ciência dos números são responsáveis, também, pelo grande impacto que tem o progresso da informática sobre a prática contábil moderna. Hoje não são mais os contadores “cientistas de números e cálculos”. Aqueles profissionais, especializados em contabilidade simples e pura, partidas dobradas, pesquisadores do estudo do patrimônio, estão em extinção. As vertentes da tecnologia e a busca contínua pelo aumento da arrecadação dos governos transformaram esses profissionais em verdadeiros “infomaníacos”, guardando pouca relação com os aspectos científicos de sua disciplina.

Este domínio das atividades dos contadores visando atender a normatizações, no caso do Brasil, emanadas principalmente da Receita Federal e do Banco Central, pode ser descrito como o poder da Receita submetendo cidadãos, empresários e contadores a seu controle (4). Com efeito, o poder arrecadador acrescentou à Receita Federal uma nova ferramenta o T-Rex, um supercomputador que leva o nome do “Tiranossauro Rex”, e o software Harpia, ave de rapina, que teria até a capacidade de aprender com o “comportamento” dos contribuintes para detectar irregularidades. A isso se soma um poderoso computador do Banco Central, que já está sendo chamado Hal. A partir da estreia do Hal, com um simples clique, COAF, Ministério Público, Polícia Federal e qualquer juiz têm acesso a todas as contas que um cidadão ou uma empresa mantêm no Brasil.

Este quadro mostra como a contabilidade, aliada à informática, transformou-se em uma nova forma de exercício do poder que é muito mais amplo e atinge a um número pouco conhecido de atividades. O exercício deste poder tem escapado aos profissionais da área, o que renova a importância do aperfeiçoamento das ciências contábeis e dos seus profissionais. O novo poder da Contabilidade é um desafio aos profissionais da área. É também um desafio ao exercício da Democracia, uma vez que resoluções que afetam profundamente as vidas dos cidadãos têm sido tomadas fora do seu conhecimento e quase sem nenhum controle da Sociedade.

5. A Contabilidade é mais Ampla que a do Dinheiro

Ao abordar o poder associado à Contabilidade, devemos começar por lembrar que ela não envolve apenas valores monetários, nem se restringe a pessoas físicas e empresas ou outras entidades jurídicas, públicas e/ou privadas. Existe a Contabilidade Nacional que envolve todas as atividades de um país e a Contabilidade Externa ou Balanço de Pagamentos que se refere (ou se referia) às transações entre países cujos conceitos estão em fase de mudança.

Além disso, a contabilidade, que parece ter nascido para avaliar rebanhos, continua a ser usada para isso. Entretanto, ela se aplica também a frota de veículos, estradas, movimento aéreo, cargas transportadas, população, residências, doenças, pragas e a um sem número de assuntos que se enquadram ou não na contabilidade de valores monetários.

Com ligeiras adaptações, as técnicas contábeis aplicam-se, por exemplo, à avaliação das emissões de gases causadores de efeito estufa, de imensa importância, para o futuro do planeta. A contribuição de cada país para a emissão dos diversos gases é contabilizada. Para cada gás se atribui um valor (como o preço na contabilidade monetária) em unidades de equivalente a gás carbônico. Fluxo e estoque desses gases são avaliados para se deduzir o esperado efeito sobre o aquecimento global. Este controle também está sendo feito a nível empresarial.

Também se aplica o mesmo conceito ao controle de materiais nucleares para evitar que eles sejam desviados para a fabricação de armas nucleares. Para monitorar essas atividades existem órgãos da ONU, nacionais e regionais que controlam essas atividades “contábeis”. Por exemplo, o Brasil é parte da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). Na área energética, cada país elabora seu Balanço Energético anual onde toda a energia produzida, transformada e consumida nas empresas, unidades residenciais e locais públicos é igualmente monitorada por processos contábeis.

Essas contabilidades também se prestam ao exercício do poder. O controle de materiais nucleares derivou diretamente do desejo de conter a proliferação das armas nucleares, entretanto essa ação decorre do desejo dos países dominantes de manterem a exclusividade no uso dessas armas. O inventário de gases de efeito estufa serve para que países se submetam a limitações que, se não cumpridas, podem resultar em punições ou perdas de vantagens políticas e econômicas.

6. A Contabilidade Nacional e Externa e suas Recentes Mudanças

O ponto nevrálgico deste artigo é, no entanto, chamar a atenção para duas contabilidades que afetam diretamente a economia dos países. É a chamada Contabilidade Nacional e o Balanço de Pagamentos que corresponde (ou correspondia) à contabilidade entre países. Os líderes da formulação da metodologia que rege essas contabilidades são respectivamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI. Um resumo de como as normas internacionais são internalizada no Brasil é mostrado no Anexo.

O Conceito tradicional da Contabilidade Nacional é que ela referia-se a contabilidade dentro das fronteiras físicas de um país, ou seja, no Território Nacional, dentro de seus limites físico-geográficos. A contabilidade externa se ocupava das trocas entre territórios, ou seja, através das fronteiras dos países.

Sem muito alarde, conforme exposto na referência (7), este conceito foi mudado por norma do FMI. No novo conceito, que rege essas contabilidades: as transações externas não são mais entre países, mas entre residentes e não residentes.

Esta definição poderia levar a conclusão que não existe mais comércio entre países, mas, entre pessoas. Ou então, poderia ser considerada uma “nação virtual” composta por não residentes com a qual seria registrado o comércio dos residentes, com os não residentes no país.

Mas não foi esta a solução adotada pelo FMI: quando um residente nacional negocia com um “não residente” ele está negociando com o país onde este “não residente” efetivamente reside. Ou seja, se uma empresa de brasileiros vende um produto para outra empresa cujo capital é de um residente tailandês está havendo uma exportação do Brasil para a Tailândia. Isto é válido, mesmo se o produto permanecer no Brasil e o comércio for realizado em reais. Nota-se que o residente tailandês pode ser, inclusive, de nacionalidade brasileira. Os critérios de residência permanente do possuidor do capital são cuidadosamente definidos no Manual de Balanço de Pagamentos do FMI, agora em sua sexta edição – PBM6 (8). Nada impede também que o possuidor do capital que fixa a nacionalidade do importador esteja temporariamente residindo no Brasil.

O raciocínio também funciona no sentido inverso: Se a empresa do residente tailandês instalada no Brasil vende seu produto para uma empresa brasileira (propriedade de residente no Brasil) está havendo uma exportação da Tailândia para o Brasil e, consequentemente, o Brasil está importando um produto feito no próprio Brasil. As normas do FMI explicitam que isso é válido mesmo que o produto seja um recurso natural como a água, petróleo ou gás natural e que as transações tenham sido feitas em reais.

Quem lida com contabilidade, pode claramente compreender, as dificuldades que isto gera no sistema das contas nacionais. O FMI pensou no assunto e tratou, em associação com o Banco Mundial que lidera a metodologia das Contas Nacionais, de como equacionar o problema. Para que as contas nacionais possam “fechar” é necessário que o produto da empresa tailandesa, fabricado no Brasil, seja retirado da produção brasileira e passe a ser registrado como produto tailandês. Assim, não haveria dupla contagem quando ele fosse “importado” da Tailândia para o Brasil.

Para completar o quadro, foi criado o conceito de extensão do “território econômico” de um país sobre as fronteiras físicas do outro. Na nova sistemática, a empresa tailandesa no Brasil passa a fazer parte do “território econômico” da Tailândia. A produção tailandesa em território físico brasileiro (que poderia ser água extraída dos mananciais brasileiros) seria considerada como produzida no território econômico tailandês e, naturalmente, seu consumo no Brasil só é possível contabilmente através de sua “importação” da Tailândia. Naturalmente as Contas Nacionais da Tailândia registrarão a produção, no caso suposto, de água da fonte brasileira.

O Banco Central que cuida do Balanço de Pagamentos do Brasil adotou a Metodologia PBM6 do FMI em 2016 e a aplicou aos dados de 2015 e, retroativamente, aos de 2010 a 2014. Comparou os resultados obtidos com o resultante da aplicação da versão anterior (BPM5) (9). Mesmo sem nenhuma mudança metodológica substancial, apenas variando os critérios de sua aplicação, isto resultou numa redução das exportações brasileiras e um aumento das importações com impacto acumulado de 10,4 bilhões de dólares no período.

Mudança ainda mais importante ocorreu em relação às transações correntes. Na nova metodologia do FMI, mesmo com os critérios do BPM5, os reinvestimentos das companhias de capital estrangeiro (de não residentes) no Brasil passaram a ser considerados como investimentos externos. Notar que essas empresas, na maioria, são consideradas pelas leis brasileiras como empresas nacionais, desde que sejam registradas no Brasil. Esses reinvestimentos resultam, portanto, de lucros auferidos em reais no Brasil de empresas consideradas nacionais. O Balanço de Pagamentos foi concebido para dar, como resultado, as necessidades de financiamento em moeda estrangeira. Para transformar esses reinvestimentos em investimentos externos foi preciso registrá-los no que se chamou de “hiato financeiro”. Para fechar as contas externas, ao invés de utilizar-se o déficit das transações correntes apurado pela metodologia FMI, utiliza-se o valor do déficit menos o do “hiato financeiro”[4].

Nele também passou a figurar os juros pagos por títulos de renda fixa no Brasil (novidade no BPM6), abatidas despesas com as reservas. No período de 2010 a 2014 isso resultou, conforme a avaliação do próprio BC, em um agravamento do déficit de 73,1 bilhões de dólares. Houve ainda um ganho no setor serviços de 3,9 bilhões de dólares sendo o resultado global sobre as transações correntes de –79,6 bilhões de dólares. Além disto, a mudança de critérios entre as duas revisões metodológicas (incorporação dos títulos de renda fixa de não residentes) fez crescer a dívida externa em 127 bilhões de dólares (dados de 2017).

7. O Poder da Contabilidade e os Desafios ao Contador

Os exemplos apontados mostram claramente o poder que vem sendo exercido através da contabilidade nas mais diversas esferas de atuação tanto no nível nacional como no nível internacional. A Contabilidade permeia muitas outras áreas do conhecimento humano e certamente a contribuição dos profissionais da contabilidade é sempre bem-vinda. Eugênio Staub afirma que a Capacidade de adaptação é uma das virtudes exigidas dos candidatos à sobrevivência na economia globalizada”.

No atendimento dos clientes habituais, o contador enfrenta hoje um arsenal tecnológico dos entes Federais, Estaduais e Municipais, que já trabalham integrados, desenvolvido e custeado pelos próprios contribuintes. E, em certa medida, consideram válido que “todos são culpados até que provem o contrário”.

As empresas contábeis são obrigadas a investir pesado para conseguir acompanhar o ritmo frenético e alucinante em inovações tecnológicas. Tudo para cumprir os ritos e obrigações impostas pelos órgãos da Receita que se apoiam em um imenso poderio tecnológico.

Mais e mais melhorias em infraestrutura são necessárias para atender, com e eficácia, os exigentes relatórios demandados pelos diferentes órgãos públicos. Se no século XV o contador era necessário, no século XXI ele é primordial para a existência, sobrevivência e continuidade das empresas.

Como no passado, a superação profissional, mais uma vez, abre caminho para as oportunidades de mercado para os profissionais da Contabilidade. A base fundamental, do trabalho dos contadores atuais junto aos clientes, é de aconselhamento e consultoria como medidas preventivas contra irregularidades.

O profissional da contabilidade tem um duplo desafio:

  • Por um lado, tem que se preparar para apoiar o cliente. Nesse novo tempo, os contadores cumprem todos os prazos, aconselham seus clientes e oferecem consultoria preventiva. As multas são altas, sendo a base das autuações o faturamento do governo. Investem em suas empresas contábeis, compram softwares de altas tecnologias, legalizados e bem integrados. A contabilidade do futuro tem regras editadas pela Receita Federal. A ciência social entrou no campo da ciência da tecnologia aplicada às Leis. O versátil profissional da contabilidade, além de dominar as mais modernas ferramentas tecnológicas, deve ainda procurar atualização constante e aprofundada de estudos legais nos ramos em que atuam.
  • Por outro lado, a contabilidade passou a ser instrumento de poder na área internacional tanto no que se refere a valores monetários como em outras áreas de atividade. Os profissionais da contabilidade devem estar preparados para grandes desafios, que podem incluir colaboração para enfrentar regras internacionais que podem atingir a saúde econômico-financeira do País. Complementarmente, a extensão da aplicação das técnicas contábeis a outras áreas também é uma oportunidade a eles aberta.

A valorização da Classe Contábil passa certamente por alcançar a capacidade para enfrentar os grandes desafios que lhe estão sendo impostos por tantas novidades políticas, econômicas e tecnológicas. Esses profissionais que já merecem o reconhecimento da sociedade, por contribuírem para o desenvolvimento do País em suas múltiplas funções, tem agora a oportunidade de enfrentar as novas frentes de trabalho que se apresentam.

Referências

  1. LEI Nº 11.638 de 28 de dezembro de 2007. Altera e revoga dispositivos da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e estende às sociedades de grande porte disposições relativas à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras. [Online] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11638.htm.
  2. FEA – USP. O que é Contabilidade. FEAUSP. [Online] https://www.fea.usp.br/contabilidade/pos-graduacao.
  3. Accounting in the Bible. HAGERMAN, ROBERT L. 2, Birminghan, Alabama : The Birmingham Publishing Company, 1980, Vol. 7.
  4. Só Contabilidade. Biografias. socontabilidade. [Online] http://www.socontabilidade.com.br/conteudo/biografia_autores.php
  5. Sena, Patrícia. Contabilidade – seu Valor “do passado ao futuro”. Linqued in. [Online] fevereiro de 2016. https://pt.linkedin.com/pulse/contabilidade-seu-valor-do-passado-ao-futuro-patr%C3%ADcia-sena.
  6. Conselho Federal de Contabilidade. RESOLUÇÃO CFC N.º 774/94. . Apêndice à Resolução sobre os Princípios Fundamentais de. Contabilidade. [Online] 16 de dezembro de 1994. http://app.senar.org.br/legislacao/setor_cont/res_cfc_774.pdf.
  7. Carlos Feu-Alvim, Andreza Starling, Olga Mafra. Mudanças no Balanço de Pagamentos. Economia e Energia. 96, julho-setembro de 2017. http://ecen.com.br/?page_id=661.
  8. International Monetary Fund. Sixth Edition of the IMF’s Balance of Payments and International Investment Position Manual (BPM6). IMF. [Online] november de 2013. http://www.imf.org/external/pubs/ft/bop/2007/bopman6.htm.
  9. Banco Central do Brasil. Série histórica do Balanço de Pagamentos – 5ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM5). BCB. [Online] http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/Seriehist_bpm5.asp.

ANEXO: Os Caminhos das Normas Contábeis

Balanço de Pagamentos:

Figura 1: Manual BPM6 e Notas Metodológicas do Banco Central

Figura 2: Sistema de Contas Nacionais e Notas Metodológicas IBGE

Normas Empresariais

Figura 3: As normas internacionais ISA (International Accounting Standard) são aprovadas pelo Comitê Diretor do IASB International Accounting Standard Board e são divulgadas e difundidas pela Fundação IFRS. Estas normas são traduzidas e adaptadas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, órgão privado criado pela Resolução CFC n° CFC 1055/05 e composto pelas organizações (ABRASCA, APIMEC NACIONAL, BOVESPA, Conselho Federal de Contabilidade, FIPECAFI e IBRACON). O caso exemplo mostrado é da IAS 36 sobre impairment “traduzida” (sempre são necessárias adaptações) pelo “pronunciamento” CPC 01. A CVM, na Deliberação 639 de 07/10/2010, aprovou e tornou obrigatória a adoção do CPC 01 para as companhias de capital aberto. Igualmente a ANEEL, na Resolução normativa 605 de 19/02/2014, aprovou o Manual de Contabilidade do Setor Elétrico – MCSE (não mostrado na figura) que também adotou o CPC 01.


[4] Uma “pedalada” que deve fazer corar os profissionais da Contabilidade.


Neste Número:

É a Contabilidade, Estúpido! | Crise na Geração NuclearA Continuidade de Angra 3 | Atualização do Padrão Técnico e de Segurança do Projeto de Angra 3  | O Poder da Contabilidade | E&E 98 Tudo |


A Desnacionalização do “Made in Brazil”


Economia e Energia – E&E Nº 96, julho a setembro  2017
ISSN 1518-2932

A DESNACIONALIZAÇÃO DO  “MADE IN BRAZIL”

“Até a água que consumirmos dos nossos mananciais pode agora ser considerada importada”.

No conceito adotado pelo FMI, o Comércio Internacional consiste na transação entre residentes de diferentes países. Esta interpretação diverge do conceito adotado pela ONU [Ref 1]que considera o Comércio Internacional como o comércio entre nações e que (ainda) toma como referência as fronteiras entre os países.

Assim, as normas do FMI, adotadas pelo Banco Central do Brasil a partir de 2016, estabelecem que um produto só é brasileiro se o capital que o produziu for de um residente no Brasil. Este conceito coincide com o do Sistema de Contas Nacionais [Ref 2], adotado pelo IBGE, cuja elaboração é liderada por um consórcio onde participam FMI. Banco Mundial e OCDE. O alcance desse conceito vai sendo aprofundado a cada revisão das normas do Fundo.

Dados do Banco Central, analisados nesta edição, mostram o efeito das modificações introduzidas pela Sexta Edição do Manual de Balanço de Pagamentos do FMI (BPM6)] [Ref 3] em relação à anterior (BPM5). Entre 2010 e 2014, esta mudança teve impactos negativos de cerca de 11 US$ bilhões na Balança Comercial e de quase 80 US$ bilhões nas Transações Correntes; a última alteração aumentou o cômputo da Dívida Externa em 40% (+ 174 US$ bilhões).

Apesar do amplo prazo em que estiveram em discussão, as implicações dessas mudanças, adotadas no final do Governo Dilma, não mereceram ainda a atenção devida das autoridades, da imprensa e dos analistas das áreas correlacionadas. Isto ocorreu, talvez, pelo conturbado ambiente político em que vivemos.

Nas normas adotadas, a “nacionalidade” do produto é determinada pelo país cujo residente possuiu o capital. A cada nova versão do Manual, novos produtos são explicitamente incluídos. Na atual, a água de nossos mananciais, o petróleo e gás de nossas reservas e a eletricidade produzida a partir de nossos rios são considerados de outra nacionalidade quando a empresa produtora é de capital de não residente. Isto é válido mesmo quando as transações são realizadas em moeda local.

O consumo interno desses bens é considerado importação e seu envio para países estrangeiros não é computado como exportação. Concretamente, são considerados produtos estrangeiros em nosso Balanço de Pagamentos.

O conceito que orienta essa contabilidade é o da extensão do “Território Econômico” do país cujo residente detém o capital além de suas fronteiras, esse “território” passa a incluir “enclaves” (de situação jurídica específica) em outros países, instalações móveis como aviões, navios, vagões e sondas de perfuração e organizações de não residentes do país “hospedeiro”. O Capítulo 4 do BPM6 descreve detalhadamente como tratar cada tipo de unidade “não residente” que são consideradas integradas ao território econômico de outros países. Elas podem ser organizações internacionais, empresas ou parte de empresas que integram o “território econômico” do país investidor em nosso território físico. O produto desse “território” é considerado aqui como estrangeiro. No Anexo 3 é reproduzida a introdução, do Capítulo 4 do BPM6, sobre a maneira de se definir esse “território econômico”.

O poder de aplicarmos nossa legislação sobre os produtos considerados “não brasileiros”, ainda não foi explicitamente colocado em cheque, mas fica fragilizado quando nossa Autoridade Monetária considera que não se trata de produto nacional. Lembrar ainda que existem países, como os EUA, que não são parte da Convenção da ONU sobre os Direitos do Mar, e não reconhecem nossos direitos sobre a Zona Econômica Exclusiva onde está situada a maioria de nossa reserva de gás natural e petróleo.

O que está paulatinamente sendo mudado é o conceito de território econômico nacional que altera a nacionalidade de bens e produtos produzidos no país, inclusive os provenientes de recursos naturais, da Terra e do Mar Brasileiros.

Em nossa opinião, as mudanças aqui referidas devem ser analisadas sob a ótica Constitucional e a de Segurança Nacional. A Política Econômica, por outro lado, sobretudo no que se refere a concessões minerais, propriedade de terras e atuação de empresas e organizações internacionais deve ser reforçada para encarar essa nova realidade.

Carlos Feu Alvim

 

 

 [Ref 1]International Merchandise Trade Statistics: Concepts and Definitions 2010 (IMTS 2010)

[Ref.2] System of National Accounts 2008 – 2008 SNA

[Ref. 3] Balance of Payments and International Investment Position. Manual Sixth Edition (BPM6) FMI 2009