Força Espacial Militar dos EUA

símbolo da spaceforce

Texto para Discussão:

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra

Resumo

O Presidente Trump criou, em dezembro de 2019, uma força e um comando espacial que passaram a fazer parte do Estado Maior das Forças Armadas. Desde 1947, a estrutura do órgão de Comando das Forças Armadas não era modificada.

Em uma jogada de marketing político, a imagem da nova força foi associada às aventuras espaciais na ficção. Seus combatentes receberam o nome Guardiões, seu recrutamento busca “mentes brilhantes” para participar de uma atividade na qual, no futuro, “a história será feita”.

A militarização do espaço sideral foi contida, na época de Guerra Fria, por acordos entre as partes.

É a primeira vez em que uma Força Militar Espacial foi oficialmente constituída em um país e coloca o restante da Humanidade sob o jugo de uns poucos governos. Evidentemente, a militarização do espaço também tem participação, um pouco menos explícita, da Rússia e China. Esses e outros países podem aderir à militarização do Espaço.
Não é uma boa notícia para a paz no Mundo.

Palavras Chave: Espaço, força militar, desarmamento, USSF, paz, guerra. forças armadas, EUA.
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A Realidade imita a Ficção?

Depois de quase três quartos de século, os Estados Unidos acrescentaram à estrutura de suas Forças Armadas um novo Comando Independente, o Comando Espacial.

O Presidente Trump, em seu brevíssimo discurso (7 min) de despedida na Base Conjunta de Andrews, citou a criação da Força Espacial Americana (USSF – United States Space Force) como uma das grandes realizações de seu governo.

“Nós reconstruímos os Estados Unidos militarmente, nós criamos uma nova força, a Força Espacial, isto seria, por si só, uma grande conquista”.[1]

Foi a primeira modificação na estrutura do sistema das Forças Armadas americanas desde 1947. Elas são agora compostas por seis comandos militares independentes: Exército, Marinha, Fuzileiros Navais, Força Aérea e Força Espacial, mais a Guarda Costeira.

A Guarda Costeira também é um Comando, sendo alocada no Departamento de Segurança Interna e não no de Departamento de Defesa, como as outras. Seu comandante não integra o Estado Maior das Forças Armadas (Joint Chiefs of Staff).

A criação dessa Força foi propositalmente associada a obras de ficção científica que, há décadas, vêm criando heróis espaciais em histórias em quadrinhos, filmes, séries para TV e jogos eletrônicos. Foi Mike Pence, Vice Presidente de Trump, que anunciou, no primeiro aniversário da Força Espacial, em 20 de dezembro de 2020, que seus integrantes seriam chamados de “Guardiões”.

O nome faz lembrar os Guardiões da Galáxia, serie em quadrinhos do final dos anos sessenta, transformada em filmes a partir de 2014. Seus logotipos guardam, aliás, similaridades (Figura 1).

símbolo da spaceforce

Figura 1: Semelhanças entre os símbolos da Força Espacial e dos Guardiões da Galáxia

Também existem similaridades entre os símbolos da USSF (United States Spacial Force), provisoriamente alocada no Departamento da Força Aérea e o do Starfleet Command, organização pertencente ao universo fictício da franquia Star Trek. Essa série, também dos anos sessenta, no Brasil recebeu o nome de “Jornada nas Estrelas: Enterprise”. Dela resultaram novos episódios, livros, jogos eletrônicos e filmes que prolongaram seu sucesso. Agora a realidade imita a arte ou apenas renova o recurso usado, também nos anos sessenta, para disfarçar as intenções guerreiras da corrida espacial.

Figura 3 de comparacao simboloes USSF e starfleet

Figura 2: Semelhanças entre os distintivos da USS Force e do Starfleet Command do Enterprise

No portal da Força Espacial o vídeo para estimular o recrutamento de pessoal procura usar o interesse dos jovens em participar da exploração espacial com a mesma intenção dos anos sessenta, como mostrado na Figura 3.

figura recrutamento USSF

Figura 3: “Talvez seu objetivo neste planeta não esteja neste planeta”; é o apelo à imaginação dos jovens para que se juntem aos Guardiões. “O Ato de Autorização FY20 da Defesa Nacional aprovou uma nova e independente Força Espacial, dentro do Departamento da Força Aérea. Enquanto esse novo ramo militar toma forma em 2020, estamos recrutando as mentes mais brilhantes na ciência, na tecnologia aeroespacial e na engenharia para atender suas necessidades. Junte-se a nós. O futuro está onde faremos história.”

Ainda para reforçar essa impressão, o astronauta americano Mike Hopkins, na Estação Espacial Internacional[2], transferiu-se voluntariamente da Força Aérea para a USSF o que reforça a ideia de associação dos “Guardiões” da USSF com os astronautas. A mudança é sutil porque ele já era um militar em uma missão civil em nome da NASA, agora ele integra uma organização militar na área espacial, um guardião do espaço em uma missão espacial internacional.

De uma maneira ou outra, isto pode solapar o desarmamento de espíritos que gerou, logo após o desmantelamento da União Soviética, a Estação Internacional Espacial ISS (International Space Station). Um Memorando de Entendimentos entre NASA e a correspondente russa Roscosmus, em 1993, foi a origem da Estação Espacial Internacional, inaugurada no ano 2000. Coincidência ou não, no filme ” 2001, uma Odisseia no Espaço” soviéticos e americanos se encontram em uma base espacial em uma antecipação de uma cooperação que, à época do filme (1968) parecia improvável. Muitas operações bilaterais na antiga União Soviética foram, em parte, patrocinadas pelos EUA para evitar a dispersão pelo mundo de conhecimentos cruciais em tecnologias sensíveis como o espacial e nuclear.

Este notável exemplo de cooperação da qual participam  mais de uma dezena de governos é um grande exemplo de cooperação científica internacional que inspirou esperanças de que haveria lugar para a cooperação científica internacional inclusiva que se deu ainda nas áreas da pesquisa de partículas nucleares em Genebra (LHC Large Hadron Collider), Suíça, e da fusão Nuclear em Cadarache, França (ITER – Reator Internacional Termonuclear Experimental).

A Missão e Doutrina da USSF

Se o portal oficial da Força Espacial busca associar os seus “guardiões” aos heróis das obras de ficção científica, ele também esclarece, por outro lado, o caráter militar da Força e seu objetivo de defender as instalações espaciais dos EUA e seus aliados, slém de estar apta para eliminar equipamentos espaciais de ataque do inimigo.

A Doutrina que embasa a criação da nova força é apresentada no documento Doctrine for Space Forces. Uma boa abordagem inicial sobre o assunto está no artigo Força Espacial dos EUA divulga sua primeira doutrina militar, publicada no portal Defesa.

No documento que formula a doutrina oficial da USSF, ela é identificada como a organização que cuidará dos aspectos militares da área onde atua hoje a NASA, em assuntos civis[1]

Embora não constem nominalmente na Doutrina, os inimigos que, no entender dos EUA, justificam a constituição dessa Força Espacial são principalmente Rússia e China que estariam capacitados para a destruição de satélites, ou para lançar foguetes ultra supersônicos de ataque (Rússia) que dificilmente seriam atingidos pelos meios tradicionais de proteção. Também deve ser lembrado que a Coreia do Norte tem se empenhado em demonstrar sua capacidade em lançamentos de foguetes capazes de inclui-la no clube dos que são capazes de ultrapassar a camada atmosférica. Um lançamento desse tipo foi feito sobre o espaço aéreo japonês e serviu de advertência para a incapacidade atual de defesa contra este tipo de ataque.

A Doutrina para a Força Espacial ainda está em discussão nos EUA. Ela tem aspectos que enriquecem a discussão em qualquer país cuja dimensão o credencie a influenciar o quadro mundial. No nosso país, a Doutrina é de especial interesse para a Escola Superior de Guerra – ESG que tem uma abordagem doutrinária semelhante sobre a organização do Poder Nacional.

Na doutrina da USSF, o Estado usa o Poder Nacional para exercer influência e controle do sistema internacional. Esse Poder Nacional utiliza quatro instrumentos primários que são os poderes diplomático, da informação, militar e econômico.

O poder militar, por sua vez, divide sua ação por ambientes físicos distintos: ar, terra e água (principalmente o mar). A estes três elementos acrescenta-se agora o espaço, principalmente o espaço próximo. O novo “terreno” de guerra dessa nova Força seria o dos voos orbitais, seja os que alcançam a trajetória de órbita estável (satélites), seja os que percorrem uma órbita de ataque saindo e entrando na atmosfera (foguetes balísticos).

A Doutrina da Força Espacial busca explicitar as razões que justificam a nova Força e o novo Comando Independente. Afirma que as armas espaciais têm sido, até agora, consideradas como simples auxiliares das forças terrestres, marítimas e aéreas. A doutrina corrente não teria conseguido captar o impacto direto e independente do Espacial “na prosperidade e segurança dos EUA”. A doutrina considera o espacial como um poder distinto dos poderes terrestre, marítimo e aéreo[3]. A porção espacial considerada como “terreno” de guerra é a porção logo acima da atmosfera, onde o “ar” já não existe. É a nova fronteira   ocupada pelo homem, onde a gravidade é ainda cerca de 80 % da observada na face da Terra onde a impressão de falta de gravidade é gerada pela sensação de constante “queda livre” que representa a trajetória balística de um satélite. Por outro lado, mesmo com o atrito atmosférico quase nulo, o ambiente onde são instaladas as bases espaciais e a maioria dos satélites é hostil ao homem devido à presença do chamado “vento solar” de partículas de alta energia que, na atmosfera, são blindadas, pela camada magnética ou magnetosfera.

A nova administração Biden enfrenta pressões de pacifistas contra a USSF, criada pelo Governo Trump. Vários artigos no mesmo Space News, no entanto, consideram que a Força Espacial têm apoio multipartidário e multicameral no Congresso e, embora possa perder prioridade, consideram que a Administração Biden não é considerada um obstáculo para a USSF. 

Os EUA, por sua vez, que ainda usavam as naves russas para acessar a Estação Internacional Espacial, agora já dispõem de um novo veículo o Orion que realizou seu primeiro lançamento de teste em 2014 e já fez, em 2020, uma primeira viagem para levar astronautas para a base internacional e que, em breve, pode estar em órbita lunar. Durante quase dez anos os EUA dependeram da Soyuz o que foi superado agora, possibilitando iniciativas militares independentes.

Aparentemente, já estamos diante de uma nova Guerra Fria ou, para ser atual, com uma “segunda onda” dessa guerra que esteve latente por algumas dezenas de anos. No caso das estações espaciais, a China já anunciou a construção da sua base espacial, teoricamente aberta à cooperação externa, e tem planos de ir a Lua.

Conclusões

Estamos nos afastando da visão de cooperação técnico-científica que tornou possível os grandes laboratórios internacionais em áreas como fusão, partículas nucleares e espacial. A corrida militar espacial nos anos da Guerra Fria fora em parte limitada pelo Acordo Antimísseis Balísticos de 1972 (AMB Treaty). Ele foi denunciado pelo Governo W. Bush em 2001, dando início ao Programa apelidado de “Guerra nas Estrelas” que, de certa forma, alimentou a ideia da Força Espacial, obra da administração Trump.

Paira a ameaça do uso militar de uma base na Lua, como objeto dessa nova corrida espacial, que foi evitada, no auge da Guerra Fria. Isso romperia definitivamente qualquer credibilidade na ideia, sustentada por décadas pelas potências dominantes, que a corrida espacial significava “um grande passo para a Humanidade” e não uma conquista nacional dos EUA ou da União Soviética. Mesmo sabendo que havia interesses militares em paralelo, pudemos experimentar alguns benefícios reais dessas conquistas e, alimentar a esperança de que haveria ainda benefícios adicionais para o Planeta. Era mais confortável isso do que aceitar que existe agora uma disputa militar pelo espaço na qual estaríamos alijados.

A Força Espacial militar dos EUA ainda não está definitivamente institucionalizada. Embora pareça improvável, seria um gesto de boa vontade do novo Governo Biden renunciar a esta nova Força criada pelo governo anterior.

Pode ser que os EUA queiram chegar a eventuais negociações com uma posição de força. O que parece insensato é admitir que alguns países se reservem o direito de dominar o espaço que não lhes pertence,  ameaçando de forma não controlável o conjunto da Humanidade.

O caminho anterior reconduziu aos EUA à supremacia na área espacial. Evitar a militarização do Espaço certamente, ajudaria desanuviar tensões internacionais e inibiria a inconveniente proliferação de novas forças espaciais em países rivais.

Notas:

[1] “We rebuilt the United States Military, we created a new force, called Space Force, and that itself will be a major achievement…”

[2] NASA Astronaut Mike Hopkins Transfers to US Space Force While Aboard International Space Station

[3] The doctrine presented in the following chapters elevates spacepower as a distinct formulation of military power on par with landpower, seapower, airpower, and cyberpower. Notar que o “air” que define a espaço aéreo é, etimologicamente a região do espação onde existe o ar, ou seja, a atmosfera, não incluindo, pois, a estratosfera. Notar ainda a inclusão do poder cibernético como uma área de poder militar que tem, aliás,  forte relação com o poder espacial.  

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A propósito:

O tema da  Força Espacial, em particular a questão sobre a possível revisão da decisão da instalação da Força, foi objeto de  manifestações da Secretaria de Imprensa do Governo Biden nestes primeiros dias de fevereiro.

Quando solicitada a dar as opiniões do presidente Joe Biden sobre a Força Espacial, a Secretaria de Imprensa da casa Branca Jen Psaki respondeu “Uau. Força espacial. “É o avião de hoje”, para acrescentar em seguida “Verificarei com nosso ponto de contato com a Força Espacial. Não tenho certeza de quem é “

Para conter os protestos que a brincadeira da porta-voz provocou, ela voltou ao assunto, propiciado mais tarde por outra questão de jornalista, para manifestar o completo apoio do Governo Biden aos trâmites de consolidação da nova força militar que se fizerem necessários.